sexta-feira, 13 de março de 2009

Santa Casa da Misericórdia de S. João da Madeira

Viver a velhice


Histórias de quem deixou a casa para morar num lar

“Quero pensar como é que se justifica a vida quando se tem 84 anos e se perde a mulher com quem se viveu 50 anos. Quero entender como é que os velhinhos estão vivos porque eu se fosse velhinho estava morto”, Valter Hugo Mae. Foi desta reflexão que partiu esta reportagem, de que fazem parte Clementina, Margarida, Esmeralda, Maria de Fátima, Alice e Alberto, Carlos Alberto e Diva, António, Carlos Fonseca, Delfim, Joaquim e Maria Amélia. São histórias de vidas que se cruzam entre os corredores de um lar de idosos, onde a tristeza, a dor da solidão e o contentamento pela paz encontrada se cruzam todos os dias. Para alguns, a ida para o lar foi imposta, para outros foi um escape ao sofrimento a que eram submetidos na sua própria casa


Maria Amélia – assim quer que lhe chamemos – completa 77 anos este mês. Os últimos nove passou-os no lar S. Manuel, da Santa Casa da Misericórdia de S. João da Madeira. “Estava a viver com a minha filha, mas não estava a dar certo”. Inscreveu-se no lar, fez as malas e mudou-se. Hoje, garante, é mais feliz do que foi em tempos. Partilha a “sua casa” com 98 utentes, na maioria do sexo feminino, a rondar os 80 anos de idade.

Lá longe no tempo, passou fome e frio. Mulher trabalhadora, não se deixava convencer por qualquer patrão que cobiçasse a sua mão-de-obra: “O povo sabia que eu era trabalhadora, mas se me quisessem tinham que me pagar mais”. Ainda hoje, no lar que se tornou a sua casa, não quer que lhe tratem das suas “coisinhas”. “Gosto de lavar a minha roupa, de passar”, diz, sorridente, enquanto arruma a tábua de passar a ferro e se apronta para conversar. “Sente-se menina”. Cabelos brancos como a cal, de arco a arrumar a franja para trás, começa a contar-nos um pouco da sua vida. Antes de tirar do sótão das lembranças as histórias da juventude passada, fala do presente. É isso, o presente, que a deixa feliz. É que Maria Amélia tem um namorado. Quer que lhe chamemos Joaquim – por causa das “más-línguas”. Conheceram-se há nove anos, tinha ela acabado de entrar para o lar. “Começou numa brincadeira, depois calhou a sério”. Joaquim, também viúvo, é utente do Centro de Dia da Santa Casa. Mal viu Maria Amélia, tratou logo de saber se estava disponível. “Era malandro ele, avisaram-me logo aqui no lar”, recorda, com ar sério. Mas também ela estava determinada a arranjar um namorico. Antes de ir para o lar, já tinha até avisado os filhos, chateados pelo facto da mãe ter decidido “mudar de casa”: “Não falavam comigo e eu disse logo: ai é! Vou arranjar um namorado. E pronto! Arranjei e em boa hora”.

E já lá vão nove anos. Joaquim queria casar, mas Maria Amélia preferiu ficar pelo namoro porque “casar só se casa uma vez”. Ele “ficou triste”, mas passou. “Tem sido muito bom para mim, é muito meu amigo. Se ele me falta, vou sentir a falta dele como se fosse meu marido”, confessa. Os dias, passam-nos sentados no banco do jardim, na sala de estar. Nada de andar encostados dentro de “casa”, “senão é só falatórios”. Por isso, de quando em vez, vão “dar um giro”.

Para este par de namorados, viver no lar de idosos tornou-se sinal de alegria. Maria Amélia conseguiu mesmo convencer Joaquim a ir “para Coimbra tratar o álcool”. “A princípio não queria ir. Dizia que tinha medo de me perder. ‘Não vais nada perder-me que eu sou grande!’. Ele foi e tratou-se”.

Ambos mantêm contacto com os respectivos filhos. Maria Amélia lamenta apenas que o neto se tenha esquecido dela. “A vida continua. E sou mais feliz agora do que no passado”.

Mas nem sempre é assim. Há muitos idosos esquecidos no lar. Ana Oliveira, psicóloga da Santa Casa da Misericórdia, garante que vai-se tentando relembrar os familiares, sobretudo nas datas festivas. “Telefonamos na época de Natal, nos aniversários”, mas em alguns casos nem assim conseguem que visitem os idosos.

É o caso de Margarida, 67 anos. A doença de Parkinson não a deixa lembrar-se da data em que veio para o lar. Mas já lá está há muito tempo. E gosta. “Aqui ajudo as outras pessoas”, diz, com um ar doce que o tempo não levou. É uma das utentes do centro que não recebe visitas. Antes de ir para lá, vivia “em casa de uma senhora”, uma espécie de pensão. Agora Margarida partilha os seus dias com Clementina, Esmeralda e Maria de Fátima. Sentadas numa das salas de convívio do lar, as quatro mulheres fazem renda, vêm televisão, conversam e dão risadas.

“É uma vida boa”, graceja Clementina. Está há seis meses no lar, onde decidiu inscrever-se a conselho da médica do centro de saúde. Tem “83 anos e meio” e uma alegria de fazer inveja. É ela que anima as tardes das amigas. Conta histórias do passado, relembra os tempos em que tomava conta dos irmãos, apesar dos seus tenros seis anos de idade, e fala das várias operações a que já foi submetida. Em tudo encontra motivo para rir. “Ando sempre bem disposta. A boa disposição ainda não paga imposto”, graceja, mais uma vez. Pelo meio da conversa, vai contando umas anedotas. “Olhe que eu sei algumas malcriadas, menina. Mas conto na mesma”.

Solteira e sem filhos, Clementina é da opinião de que se tivesse filhos não seria mais feliz. “Quando somos velhos já não querem saber de nós. Por isso, é melhor não os ter”, sublinha, deixando um alerta aos mais jovens: “quando chegarem a velhos vai acontecer-vos o mesmo”. E solta mais uma piada: “Se quisermos filhos vamos aos chineses comprar meia dúzia, eles vendem de tudo”. As amigas riem-se.

Maria da Fátima também não tem filhos. E, nesse aspecto, partilha da opinião da colega: “Tudo funciona bem quando somos úteis, quando deixamos de o ser arrumam-nos”. Foi o problema numa perna que a trouxe para o lar. Dependente de uma pequena mota para se mover, Maria de Fátima não quis ser “um fardo para a família”. “Acho que foi a melhor opção. Aqui é quentinho”. Os dois irmãos e um cunhado visitam-na regularmente, “mas não tanto como merecia e gostaria”. Está no lar há três anos. Com 67 anos, diz ainda sentir-se uma jovem. “Não estou velha. Gosto de me vestir bem e andar cheirosa. No espelho vejo rugas, mas cá dentro sinto-me jovem”.


Viver depois do outro morrer


O dia-a-dia num lar de idosos é marcado pelas horas das actividades, da missa e do terço, mas sobretudo das refeições. Os utentes tomam o pequeno-almoço entre as 7h30 e as 9h00. O resto da manhã passam-na entre o quarto e as salas de convívio. Alguns até têm a sua cadeira ao pé da televisão “reservada” e ai de quem se atreva a sentar ali na hora da telenovela, da Fátima Lopes ou do Preço Certo.

Faltam cinco minutos para o meio-dia e começa a haver um corrupio junto às portas de acesso ao refeitório. É uma das horas sagradas, a do almoço. A ementa informa que o prato do dia é empadão.

Alice, de 75 anos, utente do lar há dois, não costuma gostar da comida. “Mas hoje até estava bom”, admite a idosa, enquanto vê um pouco de televisão na companhia do marido, Alberto. É assim que passam o tempo até às 15h45, hora do lanche. Novamente um corrupio nas entradas do refeitório.

Uma hora que a António passa ao lado, não vai lanchar. “Estou a ficar gordo”, graceja. Encontramo-lo no quarto, outrora partilhado com a esposa, agora com um colega recém chegado ao lar, Carlos. Tem um ar triste o “sr. António”, homem de 89 anos. Mas garante que tem “força de vontade para viver” e que todos os dias vai dar as suas “voltinhas para todo o lado”. O mais difícil é quando cai a noite. “Durmo mal e quando durmo sonho sempre com a minha mulher”, diz, de olhar cabisbaixo. A esposa faleceu “faz dia três de Abril dois anos”. Desde então, António só se sentou uma vez na sala de convívio. Levanta-se todos os dias às 5h30 e faz a sua cama, como a sua esposa lhe ensinara. Tem filhos sr. António? “Infelizmente tenho um, mais valia não ter nenhum”.

A história de Delfim tem algumas semelhanças com a de António. Também está na casa dos 80 anos, também trabalhou na Oliva e também saiu de casa por causa do filho. O filho é toxicodependente e, depois da morte da esposa, Delfim foi “pai e mãe”. “Eu andava farto e dizia-lhe muitas vezes que qualquer dia o deixava. Ele dizia-me ‘vai’. Então fiz as malas e vim. Foi a melhor coisa que eu fiz”. Está no lar há quatro anos. Recebe a visita da filha de 15 em 15 dias e de um outro filho nas datas festivas. Mas aquele filho só o visitou uma vez.


Da casa de repouso para o lar


Antes de vir para o lar S. Manuel, Carlos Alberto, de 73 anos, esteve na Casa de Repouso Manuel Pais Vieira e Júnior. Uma queda de um posto deixou-o em coma durante meio ano. Recuperou, mas precisa do auxílio de uma cadeira de rodas e de um andarilho. A operação da esposa, devido aos esforços que fazia para cuidar do marido, ditou a ida para a casa de repouso. “Mas ele não gostava de lá estar, estava muito isolado”, conta a esposa, Diva. Por isso, mal teve uma vaga no lar, mudou-se. “Agora está muito melhor”. “Aqui vejo mais pessoas. Só falta uma rádio amadora”, diz, para recordar que foi “durante 30 anos animador de uma rádio amadora”.

Diva não está no lar, mas faz questão de fazer companhia ao marido todas as tardes. Chega depois de almoço e ali fica até anoitecer. “Não temos filhos e o meu marido é muito meu amigo”.


Quando a morte é encarada como rotina


A dona Ângela é a utente mais velha do lar S. Manuel. Tem 100 anos e é uma senhora lúcida e com energia. Do tempo em que mora no lar já terá, certamente, vivido o falecimento de vários “colegas de casa”. Coisa normal por aqueles lados.

“À excepção da morte do companheiro, as restantes são encaradas muito naturalmente”, garante a psicóloga Ana Oliveira. Para o utente Delfim, “é preferível ver as pessoas a morrer do que a sofrer”. “Tenho medo da vida, mas da morte não”, sublinha, convicto de que “a morte é a libertação”. O último falecimento do lar aconteceu na semana passada. Um assunto que já foi esquecido. “É a lei da vida. Quem nasce morre”, simplifica Delfim.


“Oh menina, vou dar-lhe um conselho”


“Nunca conte nada da sua vida a ninguém”. O conselho é de Maria Amélia. Ainda antes de se aprontar para o jantar, marcado para as 18h30 (hora de Inverno), a idosa deu cinco dedos de conversa sobre os cuidados a ter com “os amigos do lar”. “Aqui dentro não há amigos. Não podemos acreditar em ninguém”, revela. Para Maria Amélia tudo ali são “aparências” porque o que as pessoas querem “é saber da vida dos outros para depois ir contar a todos”.

Delfim também não faz muitas amizades no lar. “Tenho um único amigo aqui”, confessa, dizendo que num lar as amizades “são complicadas”.

“Olhe menina, e tenha cuidado com os homens. Não vá na conversa deles”. Posto isto, Maria Amélia foi jantar.



Números

99 idosos no lar S. Manuel

46 idosos na casa de repouso

7 idosos no Centro de Dia

1 tentativa de suicídio registada

80 anos é a média de idades


Por: Andreia A. Barbosa

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