“Há um elemento emblemático que é a própria bandeira…”
“Ao serviço de quem precisa” é o lema da Misericórdia de Viseu. É assim hoje e há mais de cinco séculos, aquando do surgimento das Santas Casas da Misericórdia.
“A primacial função das Misericórdias é a componente social”, disse ao Jornal do Centro o director do Museu da Misericórdia, Alberto Correia, de 69 anos. O mesário que está a cumprir o sexto ano nessa função, abriu-nos as portas do “Tesouro” e guiou uma visita à descoberta da arte e da cultura…
Em que contexto surge o Museu da Misericórdia?
O Museu, que também designamos por “Tesouro”, congrega um significativo corpo de bens que se foram recolhendo ao longo dos anos de vida da Santa Casa de Misericórdia de Viseu.
Este Museu está instalado no contexto da belíssima Igreja da Misericórdia, com uma fachada do estilo barroco do século XVIII. Possui duas alas laterais – norte e sul – que tradicionalmente as Misericórdias utilizavam quer como serviço administrativo quer como botica para administração de medicamentos para quem precisasse. Estes serviços das alas laterais foram desactivados e a Misericórdia requalificou-os. Na ala norte encontra-se o Museu propriamente dito, com a colecção permanente de várias obras de arte que traduzem toda a vivência da história, através de imagens e documentação, através de iconografia variada que respeita aos actos de culto, às procissões e ao quadro devocionário.
Mantemos uma colecção permanente com muita dignidade, que passa também por um registo de todo um património cultural e artístico que é também um registo das vivências destas instituições muito peculiares. A Misericórdia de Viseu tem feito toda uma recolha, um tratamento, um estudo e uma inventariação do património o que mostra a disponibilidade social, através do Museu ou Tesouro.
Na ala sul prolongou-se o Museu. Está destinada para exposições temporárias. Temos uma exposição temporária aberta há uns meses, dedicada aos tradicionais beneméritos da Misericórdia, denominada “Histórias de bem-fazer”. Vai ficar exposta durante dois anos – até 2012 – dando depois lugar a outra de quadros de diversos pintores, de elementos iconográficos, de documentação e de elementos textuais de fácil visibilidade.
O que há no museu?
Estão presentes objectos que tiveram, em tempo, um uso prático. De um quadro ilustrativo de uma sala, de uma prata ou louça para servir à mesa, até às arcas para guardar roupa. Desvalorizado este valor de uso, ganharam apenas um valor de arte e então recolhem-se nos museus como testemunho dessas vivências. As peças que aqui constam foram restauradas e servem como testemunho, para que conheçamos hoje as ritualidades e os serviços de outrora.
Qual a peça ex-líbris do Museu da Misericórdia?
Nós não temos propriamente tesouros nacionais, ainda que todos os objectos tenham muita dignidade. Há um elemento emblemático que é a própria bandeira da Misericórdia. Todas têm uma bandeira que era utilizada nas procissões ou nos actos solenes e que foi sofrendo alterações ao longo dos tempos. Contudo, possuem um cânone que ficou estabelecido no século XVII, e que não mais se alterou.
A bandeira é o elemento iconográfico que temos de maior valia. Foi pintado por um pintor viseense de grande gabarito chamado Pintor Gata, foi-lhe encomendada esta bandeira que para nós figura como tesouro. Há também outros quadros de Visitação, pedidos pela Misericórdia, nomadamente um emblemático pintado por António José Pereira, o conteúdo da Visitação articula-se como uma das devoções mais particulares da Misericórdia e uma das festas maiores da Santa Casa da Misericórdia. Há também um pequeno tesouro de prataria e ourivesaria ligado aos objectos litúrgicos que foram ficando em desuso, como missais ou paramentaria, que possuem essa valia intrínseca.
Quem é que faz a escolha das obras para exposição?
Sou eu. Como mesário fiquei com um pelouro ligado à divulgação e ao património cultural, daí que me tivesse empenhado, desde que vim, em recolher e inventariar tudo o que havia, um pouco perdido nas diversas instalações. As peças foram restauradas, os espaços requalificados e construiu-se todo um programa que está visível a todos quantos nos visitam.
Pode comparar-se ao Museu Grão Vasco?
Este é um Museu que não tem a classe do Museu Grão Vasco. Os dois são importantes, mas a extensão, a qualidade e o tempo que já leva, quase 100 anos, tornam o Museu Grão Vasco melhor. Este é um museu ainda muito jovem, com apenas três anos.
O Museu possui algum acervo?
O fundamental está exposto, aquilo que é mais preciso, singular e paradigmático. No entanto, há uma série de outros objectos, um pouco repetidos e com menos qualidade, ainda assim dignos de se ver, que se encontram, à imagem do que acontece nos outros museus, nos depósitos. Temos já uma sala espaçosa na residência Rainha Dona Leonor onde está guardado todo esse património que não está exposto. Frascos de farmácia, bustos de alguns beneméritos e mais de meia centena de quadros são algumas das obras guardadas.
Já se procedeu a alguma alteração das peças durante os três anos?
O Museu apresenta uma exposição permanente, houve uma ou outra alteração dos quadros, mas nada de relevante.
Quantas pessoas visitam anualmente o Museu?
Cerca de seis mil pessoas. Consideramos que é já um número bastante significativo e que nos honra, por isso é que merece que esteja permanentemente aberto, como está.
Quais as funções de uma Misericórdia?
A primacial função das Misericórdias é a componente social. Por acréscimo, há a vertente religiosa isto é, a Misericórdia nasceu cristã, católica e daí que a realização de missas, festas e procissões sempre tenha acontecido. Aliado a estas duas valências associa-se a componente artística. As pinturas associam-se à parte mais espectacular do culto, mas os objectos de farmácia, por exemplo, têm a ver com a prestação de serviços dessa parte social que prevalece até aos dias de hoje.
E os momentos mais marcantes da sua história?
O momento mais importante foi a fundação. Apesar de não termos a documentação exacta do ano em que foi fundada, as Misericórdias têm a sua origem em 1498 e velozmente se expandiram. A Misericórdia de Viseu deve ter sido criada muito rapidamente, dadas as relações que havia entre os Bispos de Viseu e a Corte. O primeiro regulamento presente no Museu, que é também uma obra exemplar do século XVI, diz que nasceu em 1516, quando o Rei D. Manuel assinou pelo seu punho esse compromisso e o entregou à Misericórdia de Viseu.
O apoio aos presos, aos pobres e aos doentes sempre foi uma marca. Há também um momento importante em 1565, quando um casal de beneméritos viseense entrega o primeiro Hospital oficial. O desafio da sua construção, muito demorada pela sua imponência, é também digno de destaque, pois retrata o esforço da Misericórdia e do empenho dos beneméritos. Outro momento chave é a construção da Igreja da Misericórdia e a construção do actual lar Viscondessa de São Caetano.
Há algumas pessoas com dificuldade em constatar a obra social na Misericórdia, onde é que está presente?
Através da prestação de auxílio à comunidade por creches, berçários, jardins-de-infância, centro de acolhimento temporário de crianças desprotegidas, lares sociais e centros de dia com apoio domiciliário. Apesar destas carências que se têm vindo, infelizmente, a agravar, a Misericórdia mantém um refeitório social e que dia-a-dia serve mais de uma centena de refeições.
Há prestações que são subsidiadas por recursos dos beneméritos e pela segurança social, dependendo das circunstâncias familiares dos doentes, mas há também pessoas que podem pagar o lar, por exemplo, mas a Misericórdia não deixa de prestar um serviço à comunidade e social, mesmo que cada pessoa possa suportar esses mesmos cuidados.
A Misericórdia está ao serviço de quem precisa, este é o lema da instituição. Qualquer desvio dessa sua função deve ser chamado à atenção, porque é a missão dos cidadãos criticar, quando a crítica deve ser feita.
Existe a possibilidade da Misericórdia criar uma Unidade de Cuidados Continuados?
A Misericórdia de Viseu candidatou-se a uma Unidade de Cuidados Continuados, em 2010. Este serviço deveria ser implantado na cidade uma vez que não existe e onde acho que era importante, dado o quadro populacional da cidade.
A Misericórdia, mais que ninguém, não só pelo seu bem-fazer tradicional mas também pela proximidade de relações que tem com o Hospital, até pelo facto de ter instalações que resultam da desafectação do antigo edifício, assume-se como uma opção válida.
Contudo, a Misericórdia de Viseu foi preterida por outras instituições, mas desejaríamos que, muito brevemente, os Cuidados Continuados fossem lançados.
“Miseris – cor – dare” é o mesmo que ter lugar no coração para todos as vítimas da miséria.
Oficialmente, as Santas Casas da Misericórdia datam de 15 de Agosto de 1485, como a sua institucionalização em Portugal. Contudo, o culto da Nossa Senhora da Piedade e Senhora da Misericórdia, já existiam no despertar da nacionalidade. Foi a Rainha Dª Leonor de Lencastre, viúva de D. João II a empreendedora desta obra.
A Misericórdia de Viseu surge em 1516 por exortação de Dom Manuel I. É recomendado o lema”servir a pobreza com a abnegação dos justos”.
Apenas a título de curiosidade, recorda-se, nesta viagem presente pelo passado da Misericórdia de Viseu, aquelas que deveriam ser, segundo o espírito do compromisso, as características principais dos Irmãos e dos Mesários e Provedor da Misericórdia:
– Irmãos: Para serem recebidos por Irmãos, os candidatos – “além de serem Homens de boa consciência e fama, tementes a Deus, modestos, caritativos e humildes, quais se requerem para servir a Deus e a seus pobres com a perfeição devida, hão–de ter ainda entre outras, algumas condições que se podem expressar deste modo:
- Ser limpo de Sangue;
- Ser livre de toda a Infâmia;
- Ter idade conveniente;
- Ser de bom entendimento e saber;
- Ter meios que bastem, para não se servir dos bens da irmandade, nem se suspeitar de que poderá aproveitar-se do que lhe correr pelas mãos.
– Mesários e Provedor:
- Será homem nobre de autoridade;
- Virtuoso de boa forma;
- Muito humilde e paciente pelas desvairadas considerações dos homens com que há-de usar e praticar;
- Repartir entre si todos os cargos segundo o que “mais for serviço de Deus”;
- E para os quais cada qual se sentir ”mais auto”, ou seja apto em condições de melhor servir, os objectivos da Misericórdia.
Jornal do Centro
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