2010-05-21, Jorge Morais
O sentido da virtude
Os 450 anos passados sobre a criação da Santa Casa da Misericórdia do Barreiro, que este ano se celebrarão com um vasto programa de actividades públicas, têm trazido à lembrança uma expressão com o seu quê de curioso: “obras de misericórdia”. São 14 essas obras, segundo a vulgata cristã – e logo esta circunstância parece reduzi-las a uma mera mnemónica congeminada por espíritos bizantinos em dogmas de sacristia. Nada mais errado: as “obras de misericórdia” radicam na melhor tradição europeia de solidariedade e fraternidade e ultrapassam, em muito, o estrito pensamento religioso. Aproveitando a passagem deste quatrocentésimo quinquaségimo aniversário (latinismo caído para designar uma vetusta idade), aceitei o desafio de recordar as origens históricas, políticas e sociais da expressão e sublinhar a sua surpreendente actualidade. É o que tentarei fazer, ao longo das próximas semanas.
Uma figura feminina de braços abertos, acolhendo sob o seu manto magnânimo os corações de intenção recta… Desde quando conhecemos esta figuração da Virtude? A Antiguidade deixou-nos abundante registo escrito, desenhado, pintado e esculpido de representações da Virtude, esse impulso interior do ser humano para estar em harmonia com “o outro”, com aquilo e aqueles que, parecendo ser-nos alheios, são também parte de nós. Ortega y Gasset, filósofo da contemporaneidade, viu que o homem social não existe independentemente da sua circunstância; mas os nossos distantes avós de Roma e Atenas já o tinham fixado, há milhares de anos, com um simbolismo cortante, por vezes com uma singeleza terra-a-terra.
A ilusão de uma Humanidade “evoluindo” para concepções e padrões de vida cada vez mais “aperfeiçoados” radica numa certa Filosofia da História que nos sugere uma “marcha”, um “caminho” linear (e sempre ascendente) do homem em direcção à sua idealidade inicial. E, no entanto, o que a Antiguidade nos mostra é que nós não chegámos hoje à ideia da Virtude: foi precisamente por aí que começámos, quando a palavra se articulou em pensamento sistemático. Se hoje tentamos ainda encontrá-la, como coisa “nova”, é porque os povos são esquecidos e cada geração supõe que o mundo começou consigo. Não começou: a Virtude é velha, como velhos são os seus opostos; e o conceito em que gregos e latinos a tinham não se distingue, na essência, do conceito em que nós hoje a temos.
Programa social
Os romanos ergueram templos à Virtude. Fizeram-no na proximidade ostensiva de templos levantados à Honra – pois, na simbologia universal, não se pode chegar a uma sem que se passe pela outra. Numa gradação iniciática, o neófito prestava primeiro o seu tributo às 15 virtudes pessoais e às 25 virtudes públicas estatuídas pela doutrina da República Romana, antes que pudesse considerar-se “honrado”. A lista é extensa, mas sublinha (em alguns casos com uma candura ingénua) muitos dos valores benignos em que ainda hoje nos revemos. Como virtudes pessoais, seriedade e cortesia, clemência e dignidade, tenacidade e frugalidade, gravidade e honestidade, cultura e diligência, respeito e prudência, saúde, severidade e verdade. Como virtudes públicas, equidade e partilha de abundância, clemência e espírito positivo, concórdia e prosperidade, confiança e sorte, génio e jovialidade, justiça e gratidão, liberdade e liberalidade, nobreza e paciência, piedade e ânimo pacífico, providência e modéstia, saúde e segurança, esperança, fertilidade e coragem. Todo um programa de bom governo…
Já então a Virtude, resumindo as qualidades pessoais e públicas ideais, era representada por uma figura feminina de braços abertos, acolhendo os seres de intenção recta. Esta idealização fez escola no Ocidente, sobrevivendo ao Império e à sua queda e atravessando os séculos da História europeia até aos nossos dias. No domínio espiritual, inspirou muitas das sociedades do Cristianismo, cruzou os mares até outros continentes e influenciou outras culturas; e, tornando-se universal, é ainda comum às Ordens iniciáticas onde se “erguem templos à Virtude e masmorras ao Vício”. Mas é na sua expressão social e comunitária que a encontramos quotidianamente, quando precisamos de distinguir entre aquilo que “está bem” e aquilo que “está mal”.
As ciências e as artes, o saber prático, o exercício da razão, a sabedoria (que na constelação aristotélica se completavam como virtudes dianoéticas, virtudes do pensar) resultam do ensino, do estudo e do treino. Mas elas não poderiam encontrar a realização plena fora do quadro de um outro conjunto de virtudes, as virtudes morais, que expressam a disposição do ser humano para a harmonia – ou para o Bem, na expressão de Aristóteles. Seria teoricamente possível fazer-se ciência, pintar um quadro, cozinhar um prato, raciocinar com lógica ou dar conselhos ajuizados, sem mais; mas todas estas acções possuem, necessariamente, uma natureza e um objecto (isto é, um sentido) que não lhes permite viver sozinhas.
Em última análise, todo o ser humano que vive em sociedade é responsável pelo sentido que dá aos seus actos. A definição aristotélica deste Bem está tão intrinsecamente ligada à ideia de harmonia, que para a explicar Aristóteles usou uma imagem da Física: a imagem da balança, que expressa por excelência o equilíbrio entre opostos – a idealidade do Meio, no qual (na mitologia universal) reside a virtude. Na modalidade latina da palavra “virtude”, a etimologia contribui fortemente para a sua explicação: a raiz é “vir, virtus”, poder e força de vontade. E em torno deste significado foi crescendo também, com os tempos, a ideia implícita de uma disposição própria para a acção. Kant situava o Bem nesta aparente simplicidade: boa acção é toda aquela que poderia servir de princípio a uma lei universal.
Mediadores de bem
A história da Virtude cuza-se, muito cedo, com a visão religiosa ocidental das qualidades humanas. Entre os séculos III e V da era cristã, as igrejas do Ocidente cristalizaram na doutrina a figura do anjo como entidade espiritual mediadora. Os primeiros Padres da Igreja tiveram, contudo, de teorizar sobre as várias heranças do pensamento antigo, pois os anjos existiam já na cultura micénica, sendo a própria palavra latina (“angelus”) resultante da adaptação da grega ἄγγελος (“anghelos”, mensageiro), e filiando-se esta em ἀγγελία (“anghelía”, com o sentido de anúncio ou mensagem). Divididos em Ordens (ou Coros), aos anjos competia, segundo a doutrina, uma “memória activa” das tarefas de Virtude.
Partindo da mais alta Ordem angélica (a dos serafins), uma escala descendente de nove graus confia missões específicas a querubins, tronos, dominações, potências, virtudes, principados, arcanjos e simples anjos. As virtudes (5ª Ordem angélica) são “seres brilhantes” que governam os elementos físicos e inspiram “graça e coragem”. Mas anjos virtuosos existem igualmente na mitologia judaica do Antigo Testamento, nas escalas esotéricas da Kabala, no misticismo sufi e na Teosofia, na fé Bahá’í, e também entre os Sikhs e os seguidores zoroastristas de Ahura Mazda. Tudo isto nos recorda que a Virtude, tal como vista pelas igrejas cristãs dos nossos dias, não é uma criação esdrúxula de teólogos imaginosos, mas o resultado de múltiplas assimilações culturais e civilizacionais.
Gregório de Nissa, teólogo, místico e santo capadócio do século IV, sublinhava que a Virtude implica “uma disposição habitual e firme para fazer o bem”. Este postulado remete-nos, inevitavelmente, para a acção e para as categorias activas em que os teorizadores “dividiram” as expressões da Virtude. Ao longo dos próximos artigos, iremos debruçar-nos sobre as 3 Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade), as 4 Virtudes Cardeais (Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança), as 7 Virtudes Cristãs (Castidade, Generosidade, Temperança, Diligência, Paciência, Caridade e Humildade) e, por fim, a expressão prática das virtudes de solidariedade social: as 14 Obras de Misericórdia.
Jornal do Barreiro
O sentido da virtude
Os 450 anos passados sobre a criação da Santa Casa da Misericórdia do Barreiro, que este ano se celebrarão com um vasto programa de actividades públicas, têm trazido à lembrança uma expressão com o seu quê de curioso: “obras de misericórdia”. São 14 essas obras, segundo a vulgata cristã – e logo esta circunstância parece reduzi-las a uma mera mnemónica congeminada por espíritos bizantinos em dogmas de sacristia. Nada mais errado: as “obras de misericórdia” radicam na melhor tradição europeia de solidariedade e fraternidade e ultrapassam, em muito, o estrito pensamento religioso. Aproveitando a passagem deste quatrocentésimo quinquaségimo aniversário (latinismo caído para designar uma vetusta idade), aceitei o desafio de recordar as origens históricas, políticas e sociais da expressão e sublinhar a sua surpreendente actualidade. É o que tentarei fazer, ao longo das próximas semanas.
Uma figura feminina de braços abertos, acolhendo sob o seu manto magnânimo os corações de intenção recta… Desde quando conhecemos esta figuração da Virtude? A Antiguidade deixou-nos abundante registo escrito, desenhado, pintado e esculpido de representações da Virtude, esse impulso interior do ser humano para estar em harmonia com “o outro”, com aquilo e aqueles que, parecendo ser-nos alheios, são também parte de nós. Ortega y Gasset, filósofo da contemporaneidade, viu que o homem social não existe independentemente da sua circunstância; mas os nossos distantes avós de Roma e Atenas já o tinham fixado, há milhares de anos, com um simbolismo cortante, por vezes com uma singeleza terra-a-terra.
A ilusão de uma Humanidade “evoluindo” para concepções e padrões de vida cada vez mais “aperfeiçoados” radica numa certa Filosofia da História que nos sugere uma “marcha”, um “caminho” linear (e sempre ascendente) do homem em direcção à sua idealidade inicial. E, no entanto, o que a Antiguidade nos mostra é que nós não chegámos hoje à ideia da Virtude: foi precisamente por aí que começámos, quando a palavra se articulou em pensamento sistemático. Se hoje tentamos ainda encontrá-la, como coisa “nova”, é porque os povos são esquecidos e cada geração supõe que o mundo começou consigo. Não começou: a Virtude é velha, como velhos são os seus opostos; e o conceito em que gregos e latinos a tinham não se distingue, na essência, do conceito em que nós hoje a temos.
Programa social
Os romanos ergueram templos à Virtude. Fizeram-no na proximidade ostensiva de templos levantados à Honra – pois, na simbologia universal, não se pode chegar a uma sem que se passe pela outra. Numa gradação iniciática, o neófito prestava primeiro o seu tributo às 15 virtudes pessoais e às 25 virtudes públicas estatuídas pela doutrina da República Romana, antes que pudesse considerar-se “honrado”. A lista é extensa, mas sublinha (em alguns casos com uma candura ingénua) muitos dos valores benignos em que ainda hoje nos revemos. Como virtudes pessoais, seriedade e cortesia, clemência e dignidade, tenacidade e frugalidade, gravidade e honestidade, cultura e diligência, respeito e prudência, saúde, severidade e verdade. Como virtudes públicas, equidade e partilha de abundância, clemência e espírito positivo, concórdia e prosperidade, confiança e sorte, génio e jovialidade, justiça e gratidão, liberdade e liberalidade, nobreza e paciência, piedade e ânimo pacífico, providência e modéstia, saúde e segurança, esperança, fertilidade e coragem. Todo um programa de bom governo…
Já então a Virtude, resumindo as qualidades pessoais e públicas ideais, era representada por uma figura feminina de braços abertos, acolhendo os seres de intenção recta. Esta idealização fez escola no Ocidente, sobrevivendo ao Império e à sua queda e atravessando os séculos da História europeia até aos nossos dias. No domínio espiritual, inspirou muitas das sociedades do Cristianismo, cruzou os mares até outros continentes e influenciou outras culturas; e, tornando-se universal, é ainda comum às Ordens iniciáticas onde se “erguem templos à Virtude e masmorras ao Vício”. Mas é na sua expressão social e comunitária que a encontramos quotidianamente, quando precisamos de distinguir entre aquilo que “está bem” e aquilo que “está mal”.
As ciências e as artes, o saber prático, o exercício da razão, a sabedoria (que na constelação aristotélica se completavam como virtudes dianoéticas, virtudes do pensar) resultam do ensino, do estudo e do treino. Mas elas não poderiam encontrar a realização plena fora do quadro de um outro conjunto de virtudes, as virtudes morais, que expressam a disposição do ser humano para a harmonia – ou para o Bem, na expressão de Aristóteles. Seria teoricamente possível fazer-se ciência, pintar um quadro, cozinhar um prato, raciocinar com lógica ou dar conselhos ajuizados, sem mais; mas todas estas acções possuem, necessariamente, uma natureza e um objecto (isto é, um sentido) que não lhes permite viver sozinhas.
Em última análise, todo o ser humano que vive em sociedade é responsável pelo sentido que dá aos seus actos. A definição aristotélica deste Bem está tão intrinsecamente ligada à ideia de harmonia, que para a explicar Aristóteles usou uma imagem da Física: a imagem da balança, que expressa por excelência o equilíbrio entre opostos – a idealidade do Meio, no qual (na mitologia universal) reside a virtude. Na modalidade latina da palavra “virtude”, a etimologia contribui fortemente para a sua explicação: a raiz é “vir, virtus”, poder e força de vontade. E em torno deste significado foi crescendo também, com os tempos, a ideia implícita de uma disposição própria para a acção. Kant situava o Bem nesta aparente simplicidade: boa acção é toda aquela que poderia servir de princípio a uma lei universal.
Mediadores de bem
A história da Virtude cuza-se, muito cedo, com a visão religiosa ocidental das qualidades humanas. Entre os séculos III e V da era cristã, as igrejas do Ocidente cristalizaram na doutrina a figura do anjo como entidade espiritual mediadora. Os primeiros Padres da Igreja tiveram, contudo, de teorizar sobre as várias heranças do pensamento antigo, pois os anjos existiam já na cultura micénica, sendo a própria palavra latina (“angelus”) resultante da adaptação da grega ἄγγελος (“anghelos”, mensageiro), e filiando-se esta em ἀγγελία (“anghelía”, com o sentido de anúncio ou mensagem). Divididos em Ordens (ou Coros), aos anjos competia, segundo a doutrina, uma “memória activa” das tarefas de Virtude.
Partindo da mais alta Ordem angélica (a dos serafins), uma escala descendente de nove graus confia missões específicas a querubins, tronos, dominações, potências, virtudes, principados, arcanjos e simples anjos. As virtudes (5ª Ordem angélica) são “seres brilhantes” que governam os elementos físicos e inspiram “graça e coragem”. Mas anjos virtuosos existem igualmente na mitologia judaica do Antigo Testamento, nas escalas esotéricas da Kabala, no misticismo sufi e na Teosofia, na fé Bahá’í, e também entre os Sikhs e os seguidores zoroastristas de Ahura Mazda. Tudo isto nos recorda que a Virtude, tal como vista pelas igrejas cristãs dos nossos dias, não é uma criação esdrúxula de teólogos imaginosos, mas o resultado de múltiplas assimilações culturais e civilizacionais.
Gregório de Nissa, teólogo, místico e santo capadócio do século IV, sublinhava que a Virtude implica “uma disposição habitual e firme para fazer o bem”. Este postulado remete-nos, inevitavelmente, para a acção e para as categorias activas em que os teorizadores “dividiram” as expressões da Virtude. Ao longo dos próximos artigos, iremos debruçar-nos sobre as 3 Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade), as 4 Virtudes Cardeais (Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança), as 7 Virtudes Cristãs (Castidade, Generosidade, Temperança, Diligência, Paciência, Caridade e Humildade) e, por fim, a expressão prática das virtudes de solidariedade social: as 14 Obras de Misericórdia.
Jornal do Barreiro
Sem comentários:
Enviar um comentário