quarta-feira, 6 de maio de 2009

Santa Casa da Misericórdia de Benavente

Coronel Norte Jacinto é o Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Benavente
“Há muita miséria envergonhada e há pessoas viciadas em pedir ajuda”

Joaquim António Norte Jacinto passou boa parte da vida perto do céu a pilotar aviões e helicópteros da Força Aérea Portuguesa. A caminho dos 60 anos resolveu colocar a experiência de gestor ao serviço dos outros e aceitou ser provedor da Misericórdia de Benavente. Gere um orçamento de 1,2 milhões de euros e mais de uma centena de funcionários. Garante que o faz com razão e com o coração, sempre com os pés assentes na terra, para evitar derrapagens que comprometam o futuro da instituição que apoia centenas de pessoas.





Como é que parece ligado à Misericórdia de Benavente?

Já tinha sido convidado várias vezes, mas era militar do quadro permanente da Força Aérea Portuguesa e só passei à reserva há um ano. Entendo que só se pode aceitar esta intervenção social quando se tem tempo e condições para dar. Achei que estavam reunidas essas condições e aceitei esta missão há dois anos e meio quando fui convidado para ser provedor.


Já estava ligado à solidariedade social enquanto militar?

Eu era director do Centro de Apoio Social de Runa, Torres Vedras, um equipamento do Ministério da Defesa que dá apoio aos militares das Forças Armadas. Esta missão era semelhante e eu já tinha experiência e conhecimento. Decidi ajudar a Misericórdia, nunca imaginando que para ser provedor teria de dar uma disponibilidade de tempo a 100 por cento.


É um cargo exigente?

O provedor que vinha duas vezes por semana à Misericórdia acabou. Hoje, tenho de passar aqui uma boa parte do meu dia e acompanhar a vida da instituição como se fosse uma grande empresa. Movimentamos 1,2 milhões de euros e temos 120 colaboradores.


É a favor dos gestores remunerados nas misericórdias?

Os provedores e as mesas administrativas não devem ser remunerados para não desvirtuar a filosofia que preside a estas instituições de solidariedade, onde o voluntariado é condição importante. Cada vez mais necessitamos de ter um director-geral que garanta a gestão da instituição e esse cargo terá de ser remunerado e ter um quadro de funções bem definido.


Gere a misericórdia com o coração ou com a razão?

Procuro gerir com um equilíbrio entre o coração e a cabeça. Não podemos gerir só com o coração porque temos de acautelar a estabilidade financeira da instituição. E não pode ser só com a cabeça e com o objectivo de dar lucros. A gestão tem de ser equilibrada para que se gerem receitas na área da saúde para compensar na área social. Sem as receitas da saúde, esta instituição entrava em colapso.


Na Misericórdia há consultas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e privadas com os mesmos médicos…

Não pode ser de outra forma. Os médicos têm de ter alguma compensação e não aceitam fazer só consultas pelo SNS. A Misericórdia tem de permitir que os médicos façam algumas consultas particulares. Mesmo assim é um serviço importante para os utentes porque evita que tenham de se deslocar a Lisboa ou a Santarém. Temos aqui alguns dos melhores especialistas nas várias áreas, mas alguns não aceitam sequer trabalhar no âmbito do SNS.


Mas é uma situação que os doentes não aceitam.

Nós gostaríamos que todas as consultas fossem gratuitas, mas não é possível. As listas de espera existem em todo o país. Mesmo, com algumas críticas, julgamos que é preferível continuar a ter aqui os médicos.


O Bloco Operatório de Benavente ainda não está a funcionar.

Não temos condições para ter um bloco operatório como se previu, porque seria uma grande responsabilidade para a Misericórdia e não podemos arriscar. Vamos ter um bloco para cirurgia em ambulatório (sem internamento). Aguardamos o licenciamento das obras na Câmara Municipal de Benavente e depois iremos equipar o bloco e colocá-lo em funcionamento. Será uma melhoria das condições para a especialidade de cirurgia que já funciona na Misericórdia e cumpre o desejo de uma benemérita que doou uma quantia para este fim há muitos anos.


Com o agudizar das dificuldades, há mais pessoas a bater à porta da Misericórdia?

Temos sentido uma maior procura e temos um plano de contingência para colocar em marcha no futuro. Com a colaboração da rede social do concelho, vamos colocar no terreno equipas a distribuir alimentação e bens essenciais porque ainda há muitos constrangimentos e vergonha de vir pedir. A sociedade ainda censura a pobreza.


Há pobreza envergonhada fechada em quatro paredes?

Há muita miséria envergonhada e há pessoas viciadas em pedir ajuda. As pessoas mais idosas que sempre honraram os seus compromissos, embora com dificuldades, não vêm à Misericórdia pedir. Têm dificuldades, mas têm vergonha de pedir. Depois temos os outros dependentes do pedir e que não têm vergonha nenhuma. Há muita gente sem necessidade que aparece todos os dias a pedir. Temos sempre dificuldade em negar a ajuda a alguém, mas há claros abusos.


Há uma preocupação particular com os funcionários para evitar problemas sociais?

Procuramos dar as melhores condições possíveis aos nossos colaboradores e quando admitimos alguém temos em conta a nossa função social. A Misericórdia tem obrigação de prevenir o aparecimento de problemas sociais e deve começar com aqueles que estão connosco. Uma actualização de um por cento nos salários custa 12 mil euros mensais. Para os funcionários é pouco, para a instituição é pesado.


Há mais voluntários na Misericórdia?

Nós temos dois voluntários e nunca conheci mais de três. Não podemos ir a casa das pessoas e obrigá-las a vir. Não há predisposição das pessoas para assumirem compromissos. O voluntário é mobilizado com facilidade para um acção pontual mas não quer assumir responsabilidades. Nem as pessoas que estão a ser ajudadas pela Misericórdia se disponibilizam para ajudar a instituição. As pessoas vêem o apoio que recebem como um dever do Estado. Os idosos, mesmo os que ainda têm condições, acham que já trabalharam muito e não estão disponíveis para ajudar.


Os utentes estão mais exigentes?

Há pessoas muito exigentes. Se ao jantar sugerimos uma refeição mais ligeira com uma sopa e uma peça de fruta, reclamam logo porque querem o segundo prato, mesmo que lhes seja prejudicial à saúde. Há um problema cultural e nós temos que saber lidar com isso. As famílias são importantes para nos ajudar.


Há aqui idosos que não recebem visitas durante meses?

Temos idosos abandonados e o abandono é um crime grave. Os filhos têm a obrigação de tratar dos idosos. Há filhos que colocam aqui os pais e depois nunca mais os procuram. Insistimos, pedimos para virem, e não aparecem nem assumem o pagamento da comparticipação que lhes compete.


Isso gera um débito na tesouraria. Já houve idosos que perderam o lugar por não pagar?

Nunca ninguém foi expulso por não pagar a mensalidade, mas temos de ter a noção de que a instituição não tem capacidade para suportar tudo. Uma coisa é não poder e outra é não querer. Temos filhos com bons rendimentos e bens pessoais que não pagam porque não querem. Temos de ter uma postura mais exigente com os que se demitem da sua responsabilidade porque a lei obriga os filhos a assumirem esses custos. Temos um défice na área social que é suportado com as verbas da área da saúde.


Há casos em que a Misericórdia assume todas as despesas?

Temos idosos a quem pagamos fraldas, medicamentos e até os funerais porque a família recusa pagar e a instituição avança, recebendo depois o subsídio da segurança social.


Nos casos de abandono, já houve denúncias ao Ministério Público?

Nunca o fizemos porque um pai ou uma mãe, mesmo quando é abandonado, defende sempre os filhos e não quer que eles sejam punidos. Não há nenhum idoso que não desculpe os filhos por piores que eles sejam.




Um choque frontal nos céus da guerra do Ultramar e o parto a bordo



Porque é que se deixou prender pelo fascínio dos aviões?

Quando se tem 17 ou 18 anos temos sonhos e ambições. Gostava muito de aviões e achava que devia ser piloto. Inscreveram-se 500 para entrar 20 ou 30 e eu tive a felicidade de ter entrado porque era um jovem médio. A Força Aérea Portuguesa não era para génios, era para jovens normais com um conjunto de condições definidas por estudos. Não podia ter problemas de saúde e tinha de ter uma boa condição física e mental.


Esteve no Ultramar?

Estive entre 1971 e 1973, mas nunca vivi nenhuma situação crítica. N guerra de guerrilha estamos sempre a correr riscos. Transportei muitos militares feridos em combate porque estava nas evacuações e vi morrerem pessoas a bordo dos helicópteros.


Foi duro…

Foi uma experiência de vida violenta porque era ainda muito jovem. Mas consegui ultrapassar e continuei a minha carreira. Fui instrutor de voo e mais tarde fiz busca e salvamento, que foi uma experiência muito interessante. Voar de noite a 150 milhas para tirar uma pessoa de um navio com o mar agitado e com o mínimo de luz, não é fácil. Para mais quando fazíamos muitas horas de voo por semana.


Havia um verdadeiro espírito de missão?

Sem dúvida. Se tínhamos de fazer, fazíamos. Nunca deixei uma tarefa por cumprir e voei até há poucos anos.


Nas missões de evacuação de vítimas, há várias histórias interessantes…

Uma vez quando evacuava uma mulher grávida nos Açores, o bebé nasceu a bordo e tivemos de ajudar a parturiente com poucas condições no helicóptero. Tudo correu bem porque estávamos preparados para as várias situações.


Teve alguns acidentes?

Tive vários. O mais grave foi no Ultramar quando um helicóptero Puma chocou com outro, mas felizmente não houve vítimas. Fiz várias aterragens de emergência, mas correu sempre bem.


Quando se manobra um avião não se pensa na morte?

Nunca. Se pensasse na morte nunca teria voado. Temos é que ser profissionais e cumprir todas as regras e normas de segurança. Se fizermos tudo bem, nada acontece. As emergências resolvem-se. O combustível nunca falta porque a gente planeia e sabe onde pode ir. As emergências só não são resolvidas quando as pessoas estão mal preparadas.


A sua experiência de militar e líder ajuda na gestão da instituição?

Eu fui piloto e tinha que decidir em segundos e decidir bem porque senão já cá não estava. Consigo ter a cabeça fria, mas tenho um coração do tamanho dos outros e isso dificulta.


Costuma levar os problemas das pessoas para casa?

Ao longo da minha vida militar vivi com cenários complicados e procurei sempre manter alguma distância para me proteger. Chegava a casa e esquecia por completo. Hoje tento fazê-lo, mas não é fácil. A luta pelo equilíbrio entre a cabeça e o coração é difícil e por vezes a nossa consciência não fica totalmente tranquila porque temos que dizer não em nome da sustentação da Misericórdia. Não podemos abrir precedentes e temos de ter a coragem de dizer não.


Cada vez que encerra um lar particular na região, há mais problemas para a Misericórdia?

Temos que acolher os idosos que lá estavam e muitas vezes são idosos de outros concelhos que vêm ocupar camas que nos fazem falta. Há lares particulares que não têm condições nenhumas, mas há outros que foram fechados por não ter licença e tinham condições. A lei deve ser cumprida, só que o fecho de um lar origina sempre situações delicadas.


A Misericórdia mudou-o como pessoa?

Sou um cidadão com mais consciência da realidade que me rodeia. Saía de manhã de Benavente e regressava á noite. Não vivia estes dramas que me chegam agora. Vivendo as situações temos maior consciência da nossa responsabilidade.





Aeroporto no campo de tiro é a melhor opção e não prejudica envolvente



O coronel Norte Jacinto foi comandante do Campo de Tiro de Alcochete (CTA) e é um especialista em aviação. A localização do novo aeroporto foi bem escolhida?

Foi a melhor escolha. O CTA tem uma área de 7,5 hectares que é património do Estado e tem todas as condições para acolher o aeroporto. Não é necessário haver expropriações e aquelas negociatas que demoram muito tempo. Por outro lado, 99 por cento das árvores a cortar são eucaliptos que não têm nenhum valor acrescido porque são cortados de sete em sete anos. A parte dos sobreiros vai permanecer. O aeroporto irá ocupar apenas uma sétima parte da área da propriedade do CTA.


Não há nenhum prejuízo para as populações que vivem em redor?

Os aviões a meio da pista já têm uma altitude que não prejudica o meio envolvente. O ruído é mínimo e não vai haver problemas para a cidade que vai nascer à volta do aeroporto. Daqui a 20 anos teremos uma cidade com milhares de famílias a viver perto do aeroporto, mas não terão problemas com o ruído e com a segurança.


Esta é uma obra prioritária para o país?

No imediato não me parece, porque há outros problemas para resolver. A médio prazo é uma obra necessária porque é uma decisão estratégica para servir o país e aproveitar todo o tráfico aéreo da vizinha Espanha. Se os espanhóis construírem um aeroporto perto da fronteira este perde importância.


O senhor, pelo seu currículo e notoriedade, é um homem cobiçado pelos políticos da região. Está disponível para ser autarca?

Nunca tive convites, nunca estive ligado a nenhum partido ou força política. Como militar estava-me vedado esse direito. Agora, passei à reserva, mas não estou interessado. Quero ajudar a fazer obra social com toda a dedicação, mas longe da vida política que deve ficar para quem tem jeito e condições para a fazer.


Não está vocacionado?

Eu seria sempre um mau político porque sou pragmático. Respeito o trabalho feito por alguns dos nossos políticos e censuro o aproveitamento e oportunismo de outros.


Vai candidatar-se para mais um mandato?

Gostaria de concluir alguns dos projectos onde estou envolvido, como o lar da Maxoqueira, mas ainda não tomei a decisão e estou disponível para fazer o que for melhor para a instituição. Também gostaria de dar mais tempo à minha família, especialmente à minha mulher que se reformou agora. Já transmiti aos irmãos e aos órgãos sociais da Misericórdia que não estou agarrado ao lugar.

O Mirante

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