sexta-feira, 29 de maio de 2009

Santa Casa da Misericórdia de S. João da Madeira

“Se nos sentarmos à espera que outros venham trazer dinheiro, não se faz nada”
Manuel Pais Vieira Júnior é dos poucos sanjoanenses que assistiu à emancipação do concelho, em 1926. Nasceu e cresceu num tempo de “bairrismo doentio” que forçava os homens à acção. Teve tarefas primordiais na construção do hospital, do estádio de futebol e de grande parte das valências da Misericórdia. É nome de rua desde o passado 16 de Maio, mas garante que é mais uma homenagem que não procurou. “Tudo foi feito com vontade de prestar serviço”, afirma. “Entendia que, tomando conta daquele encargo, tinha de dar conta do recado”. E deu.
Se há vidas que mereciam um livro, a de Pais Vieira é uma delas, embora esse registo já esteja a modos que feito. Nos dois volumes dos “Subsídios para a História da Santa Casa da Misericórdia de S. João da Madeira” que escreveu e publicou em 2000, não é só o percurso da instituição que conta. É também o da cidade e o seu próprio, já que dedicou 45 anos dos 96 que tem a esta casa.
Por ocasião da atribuição do seu nome a uma rua da cidade, o labor foi ao encontro de Manuel Pais Vieira Júnior na casa de repouso com o seu nome, onde reside há cerca de três anos e onde ainda é tratado como provedor. Durante duas horas, lá foi desfiando alguns capítulos da sua vida com a satisfação de quem cumpriu uma missão. “Dei conta do recado”, repete, vezes sem conta, quando recorda um ou outro episódio.
Manuel Pais Vieira Júnior é um daqueles homens cuja história se confunde com a da cidade. Provedor da Santa Casa da Misericórdia durante 36 anos, industrial de relevo e autarca, é um dos últimos sanjoanenses vivos que assistiu à emancipação do concelho, em 1926, à chegada da luz eléctrica à vila, mas, ainda antes disso, à conquista da Taça La Salette, o troféu futebolístico que havia de atiçar o bairrismo dos sanjoanenses até à independência administrativa. “Ainda é a mais bonita taça que está na sede da Associação Desportiva Sanjoanense”, diz, emocionado.
A vitória de 5-0 sobre Oliveira de Azeméis, na altura sede do concelho, haveria de ser cantada durante os anos que se seguiram em versos e canções. Pais Vieira tinha nove anos à época. “Vivíamos um ambiente de bairrismo bastante inveterado, quase doentio”, lembra. “Para reconhecer uma assinatura - qualquer coisa -, tínhamos de ir a Oliveira de Azeméis. Éramos obrigados a ir lá para tudo e para nada. E aqui é que estava a grande indústria! De forma que, com este bairrismo todo, formei a minha personalidade ao gosto daquela época”.
Nascido e criado naquele ambiente, Pais Vieira passaria 11 anos no Brasil, antes de se dedicar com mais afinco aos assuntos da terra. Durante os anos em que foi vereador na câmara municipal foi também membro da comissão de obras que construiu o Estádio Conde Dias Garcia. Manuel Luís Leite Júnior, que presidia à comissão, foi entretanto para Lisboa e Pais Vieira ficou “com a criança nos braços”. “Levei a coisa a sério e com os demais membros da comissão fizemos a obra que lá está”, recorda. “Isto em 1947. Ainda hoje está como está. As novas direcções arrelvaram o campo, mas a estrutura é a mesma”, conta, orgulhoso. “Dei conta do recado”, conclui.
De chapéu estendido
Divergências com Renato Araújo, à época presidente de câmara, acabaram por provocar a saída de Pais Vieira do executivo. Terá sido por essa altura que foi convidado a integrar a mesa da Santa Casa da Misericórdia, onde passou 45 anos, 36 dos quais como provedor.
Aos seus mandatos estarão para sempre ligados os anos áureos do hospital de S. João da Madeira. Em três anos, o edifício estava concluído, apetrechado e a funcionar. Mais tarde, ainda antes do 25 de Abril de 1974, o provedor consegue a licença para a sua ampliação, cuja primeira fase concluiu, elevando para 110 o número de camas disponíveis naquela unidade. Até à altura, tinha apenas 66. “Tudo isso foi feito com vontade de prestar serviço”, garante Pais Vieira. “O meu julgador era a minha consciência e eu entendia que, tomando conta daquele lugar, tinha de dar conta do recado”. Para cumprir a sua missão, o ex-provedor teve mesmo que “cruzar” o seu nome e o de outros, mas “tudo se fez e tudo se pagou, sem hipotecas”. “Em 1967/68, não devíamos nada a ninguém”, garante.
“Até que veio o 25 de Abril e destruiu tudo”, lamenta. Hoje, Pais Vieira, que andou no passado de chapéu estendido a angariar dinheiro para a valorização do hospital, olha para o equipamento com tristeza. “Está quase inválido. Sinto brutalmente”, desabafa.
Depois da revolução, os irmãos da Santa Casa revalidaram o mandato de Pais Vieira como provedor da instituição. Foi nessa altura que este pôs mãos à obra para a construção do lar de idosos, um dos primeiros no país. Conseguiu uma comparticipação de 21 mil contos, gastou 60 mil e o dinheiro apareceu.
Depois do lar veio o infantário com 150 lugares. “Também nessa altura foi terrível arranjar o dinheiro mas ele apareceu”, conta. Vendeu-se o hospital velho e fez-se a obra. Como? “A principal razão é esta: acção. Se nos sentarmos à espera que os outros venham trazer dinheiro, não se faz nada. Mas se andarmos com um chapéu na mão e bater às portas certas, arranja-se dinheiro para tudo”. Embora hoje com mais dificuldades, admite.
Santa Casa tem muitas responsabilidades
Com a criação do Centro Hospitalar Aveiro Norte e a possibilidade do retorno do hospital de S. João da Madeira à administração da Misericórdia, a instituição viu-se a braços com nova contenda. Apesar das inúmeras viagens de Pais Vieira, Sidónio Pardal e outros mesários a Lisboa, foi Santa Maria da Feira que acabou por ganhar um hospital de raiz. Uma decisão que para o ex-provedor foi motivada pelo peso eleitoral do concelho. “A Feira tem muitos votos, S. João da Madeira tem poucos e o primeiro-ministro lá decidiu em favor da Feira. O hospital custou talvez quatro vezes mais do que custaria aqui, porque o nosso estava meio feito. Lá, foi preciso fazê-lo todo”.
Assim, quando viu que a coisa não tinha solução, Pais Vieira dedicou-se à construção da Casa de Repouso, onde reside, desde que a esposa faleceu. A ideia surgiu durante uma visita à Suécia, onde o ex-provedor viu um equipamento semelhante. “Pensei que podíamos fazer melhor e saiu isto que aqui está. Tenho uma mulher a dias e uma filha lá em casa, mas prefiro estar aqui. É a disposição e preparação que esta gente tem para tratar dos utentes”, justifica.
Foi durante a mesma altura que a Santa Casa, por sugestão do Estado, criou uma casa de acolhimento de menores em risco e simultaneamente assumiu a gestão do IOS. Este infantário “tem sido ruinoso” para a instituição, “mas lá se tem aguentado”. Entretanto, já depois da retirada de Pais Vieira, a Misericórdia ainda criou a Unidade de Apoio a Toxicodependentes, entre outros serviços que ainda presta. “É demais”, conclui. “O Estado encontrou sanjoanenses devotados para tomar conta e as instituições não podem recusar”.
No entanto, considera que “hoje, a Santa Casa está bem”, depois de um período mais conturbado a seguir à provedoria de Sidónio Pardal. Da sua passagem pela instituição lembra as constantes provas de confiança dos irmãos e algumas sessões mais disputadas. “Ninguém estava contra mim”, esclarece logo. “Eram uns contra os outros e eu no meio. Eu tinha a confiança de todos”.
Considera que, na área social, ainda muito pode ser feito, mas delega a responsabilidade noutras entidades que não a Misericórdia. “Mas, cautela, é preciso que sejam pessoas responsáveis”, avisa. “Não aceito a desculpa que câmara não faz, ou não ajuda… porque nos trabalhos em que me meti não estava a contar com a câmara, estava a contar connosco, com os parceiros. Nós é que tínhamos de fazer”.
O industrial corre riscos
Como muitos sanjoanenses, Manuel Pais Vieira Júnior admite ter ficado chocado com o comportamento de algumas pessoas depois do 25 de Abril. “Nunca fui político”, justifica. Mas, mais do que isso, lamenta os efeitos da revolução no crescimento do hospital de S. João da Madeira e na indústria de chapelaria.
Ligado à fundação da Fepsa, onde manteve funções mesmo depois de completar 80 anos, é com alguma amargura que recorda os tempos difíceis da indústria logo após a revolução. “Até aí ainda se ia de chapéu para o Alentejo, mas depois passou-se a ir de boné”, recorda. “Foi preciso mão forte, mas segurámos a Fepsa. Começamos a fabricar para a França e para os EUA. Hoje, a empresa aguenta-se a exportar para os EUA”.
Para além da Fepsa, Pais Vieira foi também sócio e administrador da Vieira Araújo – hoje, gerida pelo filho -, e à Viarco, onde exercia a função de técnico de contas, desde sempre a sua principal actividade.
É dos poucos sanjoanenses que conseguiu aliar com sucesso uma carreira na indústria e a dedicação às causas sociais. E, por isso, foi-lhe atribuída já a Medalha de Mérito Municipal em Ouro e, mais recentemente, o seu nome virou nome de rua em S. João da Madeira. Homenagens que aceita, mas, garante, não procurou.
Questionado sobre o bairrismo que se vê hoje, Manuel Pais Vieira Júnior ri-se primeiro e depois desabafa. “Encontram-se bairristas, mas não à mão de semear. É um bocadinho mais raro”, afirma. “Foi uma desilusão para mim ver os filhos dos industriais a contentarem-se com um ordenado certo. O industrial não tem ordenado certo, corre riscos. Aquele bairrismo, aquela capacidade, aquela coragem que nós diziamos é desta massa que eles se fazem, já não se pode dizer que é geral. Está longe disso”.
Diz com orgulho que é do tempo em que, em S. João da Madeira, havia sete funcionários públicos: quatro professores, dois funcionários dos correios e um coveiro. “Tudo o resto trabalhava”, exclama. Agora, “é o emprego público”, define assim o sonho de uma sociedade que, na sua perspectiva, amoleceu.
Por: Anabela S. Carvalho
Labor

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