quinta-feira, 4 de março de 2010

Santa Casa da Misericórdia de Cantanhede

O provedor da Misericórdia que “sabe consertar” o tempo
Janeiro 22, 2010 in Gentes de Ouro

Rui Rato, 42 anos, é o mais novo provedor da Santa Casa da Misericórdia de Cantanhede, facto que não o intimida e só lhe dá a vantagem do tempo para concretizar todas as obras que ambiciona para a instituição. O médico dentista gosta da minúcia das coisas e talvez por isso tenha aprendido, ainda antes da Faculdade de Medicina Dentária, a arte da relojoaria na Casa Pia, onde o famoso mestre Américo foi um dos professores.

Não deixa de ser surpreendente e pouco provável a revelação de Rui Rato ao AuriNegra enquanto conta o percurso de uma vida que, ainda jovem, já passou pelo associativismo, pela ligação a muitas instituições e artes e mais recentemente pela Santa Casa da Misericórdia.

O que a maior parte das pessoas não sabe é que o médico dentista, que trocou Medicina por Dentária ao fim de um ano de faculdade, desmonta despertadores como ninguém e chegou mesmo a fazer cursos de relojoaria na Casa Pia, com o conhecido Mestre Américo.

O mais novo de quatro irmãos e filho de mestre relojoeiro foi o único que se interessou, até determinada altura da vida, pela arte do pai. “Tenho uma característica muito minha, a de não conseguir estar parado, estou sempre a fazer alguma coisa, quer seja na área profissional quer seja na social”. Usa até a velha máxima de que “quem correr por gosto não cansa” e assume total responsabilidade “por todas as coisas que faço e as funções que assumo”, referindo-se concretamente ao recente cargo para que foi eleito, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Cantanhede.

Assume que tem um espírito agitado, mas quem o conhece sabe que “nunca deixo uma função ou uma decisão para trás”.

Quanto aos relógios, com os quais conviveu desde muito novo, herdou o gosto do pai e admite que ainda hoje, se lhe derem um despertador para as mãos o desmonta em três tempos, isto apesar de considerar que é difícil “mexer” com memó-rias que trazem saudades do pai.

“O meu pai trabalhava muito, já faleceu há 13 anos mas recordo-o como um homem muito honesto e muito dado aos outros. Era um artista e ainda chegou a ter 14 ou 15 pessoas a trabalhar com ele na oficina em Cantanhede, numa altura em que a relojoaria tinha uma grande importância nesta região”.

Nas férias, e ao longo da adolescência, fez vários cursos de relojoaria na Casa Pia, onde também teve como professor o mestre Américo. Embora nunca tenha sido interno, gostou da experiência e tem a certeza que foi decisiva para seguir o curso de Medicina Dentária.

“Gosto de trabalhar com coisas pequenas, com minúcia e essa experiência na adolescência acho que foi fundamental para a decisão de ter mudado de curso para Dentária. Também tinha pensado em oftalmologia.Por isso, está a ver, há com certeza uma relação com essa experiência anterior, esse pormenor das coisas”, admite.

Mas a vida dá muitas voltas e nessa altura, o jovem Rui Rato teria, nos desejos do pai, outro caminho a percorrer. “O meu pai tinha outra intenção para mim, sempre gostou que eu fosse um dia engenheiro electrotécnico, porque nessa altura o ‘quartzo’ estava a entrar em Portugal e ele sempre achou que eu ia seguir essa linha. Quando eu lhe disse que ia para Medicina talvez tenha ficado um bocadinho desiludido mas, como qualquer pai, apoiou a minha decisão”, recorda.

Apesar dos anos que já passaram, Rui Rato fala do pai com um orgulho nítido, caracterizando-o como um homem “que sempre fez muito pela vida, nunca foi uma pessoa que criasse dependências e sempre nos transmitiu isso, a mim e aos meus irmãos”, adianta.

Apesar de dois dos irmãos terem ficado ligados ao comércio da relojoaria, nenhum aprendeu esta arte, o terceiro é economista e Rui Rato foi o único que aprendeu e que sempre manteve o gosto pela re-lojoaria.

O médico recorda-se exactamente como começou a mon-tar despertadores e como numa tarde “desmontou” também o marketing que o pai já fazia junto dos clientes. “Comecei com uns kits de plástico, lembro-me que tinha uns sete ou oito anos, e o meu pai tinha umas imitações que vinham da Suíça e que era suposto o ele dar de brinde aos clientes. Numa tarde montei aquilo tudo e por um lado o meu pai até ficou aborrecido, porque tinha trazido aqueles kits para fazer uma espécie de marketing e eu derreti-lhe essa intenção”, conta.

Já mais tarde, por volta dos 12 anos, começou a desmontar despertadores verdadeiros e a limpar as peças, um trabalho que exigia a tal minúcia que guardou ao longo da vida e que, garante, ainda hoje mantém. “O meu pai, de certa forma, formou-me na parte profissional e também na social, já que, apesar de não ser conhecido, era bastante bondoso, fez parte das Conferências de S. Vicente de Paulo e da Misericórdia e gostava de ajudar os outros. Recordo-me que tínhamos domingos em que não conseguíamos almoçar em família porque havia constantemente pessoas a solicitar o meu pai para um sem número de coisas e essas coisas também foram assimiladas por nós. A nossa casa estava sempre aberta para a solidariedade”, conta ao AuriNegra o médico dentista, que não esquece a mãe ao acrescentar que “também ela, naturalmente, tinha esse espírito e acompanhava o meu pai nesse sentimento”.

Sem ambições políticas

A recente eleição para provedor da Misericórdia, como faz questão de referir, é um reflexo dessa educação virada para os outros, para o lado social da vida. Na instituição está já há sete anos, sendo que a eleição pelos irmãos para provedor, “foi uma sequência normal do trabalho desenvolvido”.

“O trajecto normal da Misericórdia, diz a tradição, é feito com fins políticos ou outros. Mas eu não tenho essas ambições, a minha preocupação é gerir bem a Misericórdia, mantê-la bem financeiramente, o que é muito difícil. Temos 400 utentes, entre crianças e idosos, e temos que ter uma preocupação também com as pessoas que lá trabalham, que têm uma determina, expectativa em relação à instituição”.

Com uma vida profissional muito ocupada, Rui Rato acha que o cargo de provedor chegou cedo, mas ainda assim não o negou e assume com orgulho o trabalho que tem pela frente.

“Trabalho em três sítios diferentes, sempre como médico dentista, e esse aspecto profissional deixa-me sem tempo, mas essa falta de tempo não implica que eu não possa estar presente nas outras coisas da minha vida. Há uma característica minha que considero muito importante, a lealdade para com as pessoas e as pessoas que fazem parte da Misericórdia fazem parte desse círculo em quem confio e neste momento a Misericórdia está a ser gerida por um profissional no qual confio, o que me traz a confiança necessária para poder fazer outras coisas e ter tempo para fazer algumas coisas”.

Considera o lugar de provedor de exigente “porque estamos a falar de uma grande instituição, mas há um grupo de trabalho que já sabe como as coisas funcionam e está bem coordenado para que tudo seja facilitado”, admite.

Nascido em Coimbra “por acaso”, mas sempre ligado a Cantanhede, Rui Rato tem raí-zes na região da Gândara que não nega, muito pelo contrário, gosta da terra e da ligação às pessoas.

“A minha vida foi sempre em Cantanhede, apesar de ter nascido em Coimbra, mas isso foi só um pormenor. O meu pai é de S. Caetano, a minha mãe de Vilamar e as minhas raízes estão aqui à volta e todo o meu percurso de vida se centra aqui”, conta.

Quanto à ligação à acção social e ao associativismo, é algo que lhe está “na massa do sangue” e diz já não conseguir viver sem essa componente.

“Estive sempre, desde a faculdade, ligado a diversos movimentos associativos, fiz parte da associação de estudantes e sempre tive o espírito associativo. Agora esta parte mais social, na Santa Casa, surge de um convite do provedor anterior, Dr. Diamantino Miguéis, até porque o meu pai tinha feito parte das direcções dele ainda antes do 25 de Abril e fez parte das várias direcções. E foi nessa lógica que surgiu a oportunidade de fazer parte das várias mesas, isto há sete anos. E garanto-lhe que entrei exclusivamente com esse propósito, fazer parte da direcção, tomar conhecimento da casa, que como sabe é muito grande”.

Na altura fez um mandato como vice-provedor e no final do mandato de Jorge Pereira foi a sucessão natural, até “porque havia que dar continuidade ao trabalho feito, às candidaturas que estávamos a elaborar para os cuidados continuados, para a creche e para a central fotovoltaica, entre outros”. Como havia que avançar com os projectos, “uma mudança radical iria com toda a certeza criar alguns problemas e a minha decisão de aceitar foi nesse sentido”, admite.

O Aurinegra

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