quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Santa Casa da Misericórdia de Viseu

António Virgílio da Cunha Magalhães Soeiro

“A tendência de fome é para aumentar todos os dias”

António Virgílio da Cunha Magalhães Soeiro é Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Viseu. "Triste" pelo chumbo do Governo ao projecto para criar uma unidade de cuidados continuados na cidade, o provedor aceitou conversar com o Jornal do Centro e com a Rádio Noar sobre outras actividades que a instituição desenvolve e os projectos que tem para o futuro. Magalhães Soeiro fala com agrado da construção de um berçário e creche nas antigas instalações da maternidade e do desejo de acabar com a lista de espera de idosos no lar social. O último ano a trabalhar no projecto do refeitório social permite-lhe afirmar que há fome em Viseu e algumas pessoas sem abrigo.

Como se define hoje a Misericórdia de Viseu?

As instituições Misericórdia procuram dar corpo efectivo a tudo quanto as 14 obras de Misericórdia equacionam com um programa globalizante, uma vez que abrangem todas as carências, hoje mais sentidas, de modo que em cada caso e em cada circunstância da vida dessas pessoas se possa dar uma resposta.

Hoje há mais carências?

É capaz. Mais no aspecto social.

Que actividades desenvolve a Misericórdia de Viseu?

A acção social da Misericórdia compreende as áreas da infância e da terceira idade. Na área da infância apoiamos cerca de 600 crianças. Em que valências? Dois jardins-de-infância que são o Nossa Senhora e Fátima e S. Sebastião, um ATL, uma creche familiar com 18 amas que recolhem durante o dia 50 bebés até aos três anos. Temos um centro de acolhimento temporário com 22 crianças que o Tribunal nos entrega. Depois temos dois lares, um com 180 e outro com 150/160 [idosos]. Dois centros de dia e apoio domiciliário. Isto dá mil e tal pessoas apoiadas. Temos cerca de 350 trabalhadores.

Obriga a um orçamento cuidado?

A Misericórdia é uma grande empresa, que é preciso gerir como uma empresa, mas diferente das normais, uma empresa de economia social. Ainda temos a farmácia, um hotel e um complexo desportivo. Temos uma quinta. O lucro de todas essas actividades lucrativas reverte para melhorar a acção social. Acrescido ao que já disse, temos a parte habitacional. Esses meios ajudam muito a acção social que desenvolvemos.

Qual é o orçamento da Santa Casa da Misericórdia de Viseu?

Normalmente três milhões de euros.

A Misericórdia continua a ter mais influência que a própria autarquia, como noutros tempos?

Não, não. Como diz o homem do Porto, o Pinto da Costa, "cada macaco no seu galho". Nós estamos subordinados como outra instituição.

O número de crianças que entra no Centro de Acolhimento Temporário tem vindo a aumentar?

A capacidade máxima é de 22 crianças.

Estão sempre no limite?

Está sempre lotado. Até já ultrapassámos às vezes.

A Misericórdia tem muitas listas de espera?

Principalmente no lar social. E temos listas de espera na parte do berçário e da creche.

Por isso é que vão avançar com a construção de uma nova creche?

Chegámos à conclusão que as instalações que temos não são suficientes nem para o que temos este ano, nem para fazer face às inscrições já feitos. Nas instalações da antiga maternidade do Hospital [de S. Teotónio] fazemos uma adaptação do que temos, com vista a criar duas unidades de creche para 66 miúdos.

Consegue dar-nos uma imagem do projecto?

Não tem nada de especial. Estamos a aproveitar todas as infra-estruturas existentes na pediatria. São projectos de execução relativamente fácil.

As obras estão para começar, e quando vai entrar em funcionamento a nova unidade?

No próximo ano lectivo tem que estar pronto.

Há dinheiro?

Sendo obras de adaptação vamos gerindo os materiais empregues com uma negociação financeira. Mas são muitas salas (10), e tem muitas particularidades.

A obra tem alguma comparticipação?

Não tem comparticipação nenhuma. Infelizmente, quando nos candidatamos dão-nos sempre uma resposta que eu acho muito interessante. Dizem sempre: "a Misericórdia é muito rica".

A Misericórdia também sofre com as consequências da crise? Pais que deixam de pagar o infantário ou pagam tarde…

Esse foi um dos sintomas onde começámos a detectar a questão da pobreza, da fome. Mesmo nas rendas, acertam a renda mas passados dois meses as pessoas estão a dizer que não podem [pagar], porque estão desempregadas, ou porque o marido deixou de trabalhar… estamos frequentemente a fazer reduções das mensalidades.

O novo projecto surge porquê?

Por duas necessidades. Primeiro, pelos pedidos que estão a ser feitos, segundo, reconhecemos que os berçários que temos não reúnem as condições ideais.

Acha que o próprio concelho tem falta de berçários para responder à população local?

Não tenho dados, mas penso que sim. O berçário e a creche são duas idades que os infantários não absorvem.

Um dos últimos projectos desenvolvidos pela Misericórdia de Viseu foi o do refeitório social a funcionar na antiga maternidade. Está a cumprir a função para que foi pensado?

Começou em 18 de Agosto, mas já antes uma das funções do refeitório social, a alimentação, ali fomos fazendo. Surgiu porque havia pedidos. Como não tínhamos o refeitório feito e depois de ser feita a selecção das pessoas, optámos por enviar comida para toda a gente que sentimos que era carenciada. A partir do momento em que fizemos o refeitório, as pessoas começaram a ir ao refeitório à excepção de 12 que não se podem transportar e nós vamos levar.

Nesta altura está a funcionar em pleno?

O refeitório tem várias finalidades: alimentação, bens, distribuição de roupa, até formação e a parte médica. A única coisa que não está a funcionar é a parte da saúde. Temos nesta altura 85 refeições [diárias], banhos no balneário social…

Tudo suportado pela Misericórdia?

Só suportado pela Misericórdia. Aquele projecto está em cerca de 100 mil euros. A primeira coisa que me disseram foi: "Não há cá pobres nenhuns" e eu fiquei muito admirado.

Não é assim?

Não é bem assim. Na semana passada, após uma noite de chuva e frio, no dia seguinte apareceu um senhor todo roto que foi dormir debaixo de uma mesa do Fontelo [Viseu]. Uma voluntária até chorou quando viu aquela pessoa. Apareceu um russo que não falava uma palavra de português, fazia parte de um grupo de três, dois deles foram-se embora e ele não tem ninguém. Dois senegaleses também lá apareceram.

Durante este ano encontrou casos que em anos anteriores não se registavam em Viseu?

Para mim são casos novos. O caso do Fontelo é um caso excepcional. Agora, a tendência de fome é para aumentar todos os dias.

Quem pode ir a este refeitório social?

Inicialmente a nossa ideia era: quem quiser vir comer pode comer. Depois apareceram pessoas que não estão referenciadas e não necessitavam de apoio. Hoje é avaliada a situação pelos técnicos da Misericórdia.

Os casos novos de que fala surgem em consequência do desemprego?

Também.

O Balneário Social surgiu da necessidade de resolver a falta de higiene destas pessoas?

Eles próprios pediam. "Então quando é que vêm os banhos?". Assim começou a funcionar e agora já não passam sem eles.

Pagam para tomar banho?

Não pagam nada.

A terceira idade é uma das áreas onde a Misericórdia tem uma lista de espera considerável. Tem algum projecto para colmatar o problema?

O espaço destinado à unidade de saúde familiar (nas traseiras do Hospital S. Teotónio) tinha na continuação um lar social. Agora, quando houver dinheiro estamos a pensar fazer aí um lar, porque temos muita gente a pedir e é um problema muito grande fazer a triagem.

O Lar de S. Caetano da Misericórdia funciona também como um espaço de cuidados continuados?

Sempre funcionou.

O vosso projecto para uma unidade de cuidados continuados foi chumbado. Ficou triste com esta decisão?

Fiquei triste porque a saúde foi uma das primeiras acções da Misericórdia em Viseu, há mais de 500 anos, no Hospital das Chagas onde hoje funciona a Polícia (PSD) e isto era um anseio nosso de um serviço que gostaríamos de prestar à população, porque entendemos que temos condições para o fazer.

Chegaram a pensar num projecto para o edifício do antigo hospital.

Com a transformação do hospital antigo [em pousada] pôs-se de parte, mas nunca deixámos de pensar no projecto. O nome é que é novo, porque a ideia manteve-se sempre. Nós sentimos diariamente que há necessidade de ter camas para esta finalidade. Candidatámo-nos, cumprimos os prazos… e aceitava esta justificação se as candidaturas aprovadas já existissem, agora não existe nada disto, nós candidatámo-nos tal como as outras entidades. Não estou a tirar mérito ao trabalho das outras instituições, agora, em termos de apreciação de projecto, temos um corpo clínico permanente, temos enfermagem permanente, temos pessoal competente habituado a estas questões, temos possibilidade de receber as pessoas que acabam o tempo nos cuidados continuados, porque temos os lares, temos uma logística montada, não percebo porque foi reprovado. Acho que é uma desconsideração muito grande para a Misericórdia.

Que resposta vai dar ao Hospital S. Teotónio quando lhe voltarem a pedir para receber mais uma situação de cuidados continuados?

Desculpem, mas têm os cuidados continuados de…

A transformação do antigo hospital numa Pousada foi um bom negócio para a Misericórdia?

Para nós foi um bom negócio. Acompanhava a decadência do prédio e todos os dias que lá ia via que já tinha caído mais uma pedra daqui e outra dali. Era um tormento e uma vergonha. Houve a recuperação de um edifício que era nosso, continua a ser nosso, há uma renda e fez-se um equipamento que dignifica a cidade.

A entrega da gestão do Hotel Príncipe Perfeito e do complexo desportivo de Cabanões foi o reconhecer que a Misericórdia não está vocacionada para este tipo de negócio?

A razão foi essa.

Ainda se deixa o património à Misericórdia?

Não.

Mas deixa-se algum.

Com contrapartidas. São pessoas que psicologicamente querem estar sossegadas de que vão ter um apoio até morrer.

ed. 406, 24 de Dezembro de 2009

Jornal do Centro

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