sábado, 18 de dezembro de 2010

Santa Casa da Misericórdia do Barreiro

2010-12-17, Ana Lourenço Monteiro
Um Dia Com… Emília Engrossa

É reconhecida no seio da Santa Casa da Misericórdia do Barreiro (SCMB) como a funcionária cujas mãos dão origem a verdadeiras obras-primas e, por isso, o Jornal do Barreiro passou ‘Um Dia Com’ a pessoa que, todos os anos, recria o Natal nesta instituição. Presépios de vários formatos e dimensões, enfeites e arranjos em miniatura e em palcos são apenas alguns dos trabalhos elaborados por Maria Emília Ribeiro Engrossa. Fatos e objectos de Natal, de Carnaval, das Marchas Populares e de outras pequenas festas são produto do trabalho manual desta funcionária e voluntária da SCMB. “Tudo o que existe aqui, que os nossos olhos vejam, é feito por mim à mão”, admite Emília Engrossa ao JB, frisando não esquecer um ingrediente essencial ao seu trabalho: “um pouco de Amor”.

9h30 – O dia de Emília Engrossa na Santa Casa tem início com a previsão do trabalho a efectuar durante a manhã e a tarde: o dia com o JB foi dedicado aos arranjos de Natal da SCMB.
11 Horas – Já no seu atelier na instituição, são iniciados os enfeites natalícios para oferta, entre outros afazeres também dedicados à temática do Natal.
14 Horas – Após o período de almoço, entre as 12h30 e as 13h30, Emília Engrossa dá os últimos retoques no Presépio de Zinco que vai animar a Creche Rainha Dona Leonor, em Palhais.
15 Horas – A meio da tarde, são feitos os enfeites do palco da Festa de Idosos dos Lares da SCMB, realizada nesta última quinta-feira.
17h30 – Os últimos arranjos de Natal são ainda ultimados por Emília Engrossa, não esquecendo um em especial: o que vai enfeitar a mesa de reuniões da Mesa administrativa da SCMB. O fim do dia de trabalho só tem lugar no seu atelier em casa.
“Tenho tido uma vida dedicada à Santa Casa”
JB: Recorde-nos as suas origens e como surgiu o seu gosto pelas artes?
EE: Eu sou alentejana, nasci em Beja, em 1943, e fui criada numa quinta no campo, com muita alegria, no meio dos animais e com uma enorme felicidade que passava também por ajudar o meu pai na horta e nas vendas no mercado. Já quando eu era pequena, todos viam que eu tinha jeito para os trabalhos manuais. Agarrava em pedacinhos de barro e fazia bonecos – como os que hoje estão no presépio em miniatura no interior da SCMB –, punha no forno e toda a gente ia apreciar os meus presépios.
A partir dos 15 anos, uma tia minha começou a influenciar os meus pais para eu vir para Lisboa estudar porque eu só tinha a 4ª classe. Dos 15 aos 20 anos, tirei então o meu Curso de Costura e, a partir daí, comecei a trabalhar em casa. Entretanto, eu sabia que havia uma modista de alta-costura em Lisboa, que tinha clientes de alta sociedade e que iam para África. Na altura, elogiavam tanto essa terra que eu pensei e fiquei com aquela ideia na cabeça: ‘Um dia, se emigrar, vou para África”.
Mais tarde, houve uma senhora que me convidou para fazer trabalhos manuais para ela e cuja filha ia para África, com o marido embaixador e os seus oito filhos. Como esta precisava de uma baby-sitter para a sua filha mais nova, pensei ‘isto é uma boa oportunidade, vou para África’. E assim foi. Naqueles tempos, as raparigas alentejanas não saíam da província; estive nessas funções durante dois anos e meio e já em África começo a receber cartas do meu marido. Casei então lá ainda, trabalhava em costura e quando voltei era retornada, em 1975, depois do 25 de Abril, em 1975.
Fui viver novamente para o Alentejo mas, como o meu marido era funcionário da Alfândega, e estava à espera de ser admitido em Lisboa. E foi assim que viemos para o Barreiro, onde já tinha família. Comecei a trabalhar em costura, aprendi artes decorativas na Escola Paixão em Lisboa e, aos 30 anos, entrei como aluna de pintura para a Universidade da Terceira Idade de Lisboa. No Barreiro, frequentei as aulas do Mestre Silva e de outro senhor que dava aulas em particular e, mais tarde, fui para a Associação das Belas Artes, nessa altura já estava a trabalhar na SCMB.
JB: Quando começou então a trabalhar na Santa Casa?
EE: A minha ligação com a SCMB ainda vem das instalações no Largo da Santa Cruz. Fui trabalhar para lá no primeiro ano pelo Centro de Emprego, em 1992. Fiquei logo apaixonada pela SCMB; gostei muito de como as minhas colegas tratavam os idosos como muita dedicação e carinho, como continua a ser hoje.
Estive como voluntária e, em 1997, fiquei como funcionária, dedicando os meus dias aos trabalhos manuais para a instituição. Hoje a Misericórdia tem tudo, não precisa de pedir nada a ninguém; pelo contrário, empresta. Não tenho horas de entrar nem de sair porque também trabalho no atelier da minha casa em Famões, em Odivelas/Lisboa.
JB: Como é o seu dia-a-dia, aqui ou nesse atelier?
EE: Montei o atelier na minha casa com todo o meu ambiente, onde cumpro horários de trabalho tal como faço aqui. Das 9h30 ao 12h30 e das 13h30 às 17h30. A partir dessa hora, chega a minha neta do infantário; estou com ela, faço então o jantar e, quando acabo de arrumar a cozinha, volto para o meu atelier. Eu não faço mais nada e gosto tanto disto que esta é a minha vida.
Não tenho uma equipa de trabalho mas já tive a colaborar comigo dois senhores, o senhor Pincho e o senhor Cabrita, mas hoje ajudam-me os senhores das Oficinas da SCMB. Algo que também já fiz foi dar aulas de Pintura na Santa Casa, a funcionárias mas também a pessoas que vinham de fora.
JB: De todos os trabalhos quais lhe deram mais prazer de fazer?
EE: Olhe dão-me todos. Mas o conjunto de 30 quadros das 14 Obras da Misericórdia foi o trabalho mais exigente. Tinha prazos para cumprir e quando cheguei à segunda etapa desse trabalho fiquei com muito receio de adoecer ou que houvesse alguma coisa que não conseguisse terminar. Mas chamei-me à atenção para não entrar em stress e aos poucos continuei. Foram três anos à volta dessa colecção de quadros, com três meses dedicados a eles aqui na própria SCMB.
Estiveram em exposição na Sessão Solene das comemorações dos 450 anos da SCMB e fico feliz por essa minha obra de pintura a que tive que me dedicar todos os dias, que me exigiu fazer um estudo, compreender o que é a Misericórdia e a própria vida de Cristo, Cheguei a comprar livros, li e fiz os desenhos todos à mão. Mas pintando esqueço-me de tudo por completo; tenho que me concentrar, inspirar e dedicar por completo, se tiver alguém ao pé de mim nem a vejo.
Depois disso estive um mês e meio para fazer os trabalhos da Feira Quinhentista e do Cortejo de Oferendas da SCMB, fiz a Caravela, o Infante D. Henrique, o rei D. João II, o Castelo, tudo em madeira e de dimensões muito grandes; levou o seu tempo. Algo que a SCMB já tem também é a sua bandeira, como as restantes Misericórdias, e os nossos pendões em honra de São José, de Nossa Senhora do Rosário, entre outros que participam sempre nas procissões.
Actualmente, tenho-me dedicado aos retratos dos provedores da SCMB e, além dos trabalhos de Natal, fiz recentemente as ofertas que entregámos aos fadistas e ao guitarrista que estiveram na recente Gala de Fados da instituição. Sou eu quem faz as ofertas que a Santa Casa dá em nome da instituição em todas as iniciativas que faz ou participa.
JB: O que acha que é preciso ter para conseguir fazer o seu trabalho?
EE: Sei que nem toda a gente consegue fazer o que eu consigo. Não sei, talvez muita dedicação pelo que faço. Além disso, em todos os trabalhos temos que pôr um pouco de Amor. O valor dele serão as outras pessoas a atribui-lo, ainda que eu lhe dê um grande apreço. Gosto muito daquilo que faço e sei que é reconhecido, principalmente pelo actual provedor, Dr. Júlio Freire, que confiou em mim dando-me a possibilidade de trabalhar no meu próprio atelier.

Jornal do Barreiro

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