sábado, 11 de outubro de 2008

Misericórdias: poder e património

Escrito por Fazerbem, em 01-04-2006

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Publicado em : Últimas, Notícias


Com o correr das horas, a Quinta de S. Pedro espreguiça-se ao sol morno do fim de Março. Nos seis hectares onde se concentram a sede da Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior e vários serviços, a clínica ainda fervilha de doentes, mas nos espaços administrativos e no centro de artesanato a hora é quase de largada.

No Parque de Campismo da Prelada, Porto, o entardecer é, pelo contrário, a altura do dia mais agitada. Frequentado maioritariamente por turistas estrangeiros que aproveitam o dia para ver a cidade, o espaço gerido pela Misericórdia ressente-se da época baixa, mas há-de animar-se com a chegada da Páscoa.

Em todos os cantos do país, 24 horas por dia, milhares de serviços das quase quatro centenas de Misericórdias estendem o seu raio omnipresente de actuação. Nos clássicos serviços sociais, mas não só. Há instituições com empresas tão díspares como pastelarias, perfumarias, confecções ou órgãos de comunicação social.

Com cerca de 40 mil trabalhadores, as Misericórdias empregam o triplo dos funcionários de uma das maiores empresas portuguesas, a PT - 14 mil. Contribuem de forma decisiva (embora não se conheçam estudos discriminados) para o elevado peso que a chamada "economia social" (ver página 5) detém no Produto Interno Bruto (PIB): cerca de 3,9%, segundo estudos do investigador Luís Jacob.

Em resultado de benemerências, detêm, por outro lado, um vasto património. Tão vasto que, como admite Miguel Loureiro, do Gabinete do Património da União das Misericórdias Portuguesas, é "impossível de quantificar". No que diz respeito ao património cultural e histórico, "existe um levantamento feito pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais". Alguns números falam por si: capelas e igrejas são 318, a que se juntam equipamentos como museus (33), cineteatros (12), galerias de arte (9), anfiteatros e salões (14) ou mesmo praças de touros (18).

Quantificar o imobiliário e propriedades rurais é, contudo, tarefa hercúlea em que nunca ninguém se lançou. "Estamos a falar de milhares e milhares de edifícios", salienta Miguel Loureiro. "É preciso perceber que cada Misericórdia é autónoma e em geral muito ciosa do seu património".

Roque Amaro, professor de Economia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresa (ISCTE), considera que essa acumulação de património de que beneficiam as Misericórdias, graças ao seu estatuto religioso, não tem sido acompanhada de eficiência na gestão dos recursos.
Em sua opinião, por dois factores. Por um lado, "uma má consciência, quase pré-industrial e arcaica, de que o investimento e a actividade económica são pecaminosos". Por outro, "falta de tradição de gestão económica", que leva a uma tendência das instituições de "não incluir técnicos habilitados".

Neste quadro, embora com excepções - particularmente a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que goza de um estatuto jurídico único -, "a maior parte das Misericórdias vai cumprindo a sua missão social, mas sem dinamismo e com excessiva dependência do Estado".

Nada que impeça, ainda assim, que as Misericórdias sejam prestadoras únicas de determinados serviços em dezenas de concelhos (particularmente no interior) e que juntem à actividade social e económica a componente cultural - com 69 grupos musicais e de teatro - e escolar. Só escolas superiores são cinco e profissionais, sete.

Tudo factores que contribuem para o poder que lhes é reconhecido a nível local. "A figura do provedor é uma figura de prestígio. Alguém que já o tinha, para aceder ao cargo, mas reforça esse prestígio precisamente por o deter", explica Roque Amaro. "E, quanto mais pobre e menos desenvolvido é o meio, mais a instituição reforça esse poder".

Inês Cardoso
Jornal de Notícias

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