segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Santa Casa da Misericórdia de Braga

Restaurar a Igreja de Jesus a partir da Eucaristia


Reabertura da Igreja de S. Marcos
Congregamo-nos para a reabertura ao culto da Igreja de S. Marcos. A primeira atitude é de acção de graças pela renovação global de todo o espaço sagrado. Para estarmos aqui, uma longa caminhada foi percorrida desde 2000. Tratou-se duma remodelação total nas estruturas, retábulos e pintura, dando consistência e qualidade à última grande intervenção efectuada entre 1905/1908, ou seja, quase há um ano.

Merece um pouco de atenção, a solicitude que a Santa Casa da Misericórdia colocou no restauro e valorização do “ex libris” desta igreja, ou seja, o Mausoléu de S. João Marcos. Este Mausoléu encerra um caixão de madeira com as relíquias do referido “Santo” e um túmulo de mármore, construído em Itália e mandado fazer por D. Rodrigo de Moura Teles, para onde foram transladadas as referidas relíquias, em cerimónia de grande pompa e solenidade, em 26 de Abril de 1718. Este mausoléu substituiu o túmulo original que agora está conservado em frente.

Estando em ambiente de Lausperene e considerando que este terá sido instituído por D. Rodrigo de Moura Teles, em 1710, é de supor que a Igreja de S. Marcos terá sido totalmente renovada, também por este motivo, na intervenção concluída em 1718.

Terei oportunidade, no Dia do Hospital, de regressar a esta história. Importa, porém, referir que a colocação duma imagem nova do Beato Bartolomeu dos Mártires, ao lado de tantas outras com longa história de veneração, evoca o facto de ter sido este Beato a entregar à Santa Casa da Misericórdia de Braga a Administração do Hospital de S. Marcos.

Esta coincidência com o Lausperene pode levar-nos a interiorizar a importância da arte na sua relação com a Eucaristia. O Santo Padre, na sua Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, pode ajudar-nos na reflexão. Diz ele:

“A profunda ligação entre a beleza e a liturgia deve levar-nos a considerar atentamente todas as expressões artísticas colocadas ao serviço da celebração. Uma componente importante da arte sacra é, sem dúvida, a arquitectura das Igrejas, nas quais há-de sobressair a coerência entre os elementos próprios do presbitério: altar, crucifixo, sacrário, ambão, cadeira. A este respeito, tenha-se presente que a finalidade da arquitectura sacra é oferecer à Igreja que celebra os mistérios de fé, especialmente a Eucaristia, o espaço mais idóneo para uma condigna realização da sua acção litúrgica; de facto, a natureza do templo cristão define-se precisamente pela acção litúrgica, a qual implica a reunião dos fiéis (ecclesia), que são as pedras vivas do templo (1 Pd 2, 5).

O mesmo princípio vale para toda a arte sacra em geral, especialmente para a pintura e a escultura, devendo a iconografia religiosa ser orientada para a mistagogia sacramental. Um conhecimento profundo das formas que a arte sacra conseguiu produzir, ao longo dos séculos, pode ser de grande ajuda para quem tenha a responsabilidade de chamar arquitectos e artistas para comissionar-lhes obras de arte destinadas à acção litúrgica; por isso, é indispensável que, na formação dos seminaristas e dos sacerdotes, se inclua, entre as disciplinas importantes, a História da Arte com especial referimento aos edifícios de culto à luz das normas litúrgicas. Enfim, é necessário que, em tudo quanto tenha a ver com a Eucaristia, haja gosto pela beleza; dever-se-á ter respeito e cuidado também pelos paramentos, as alfaias, os vasos sagrados, para que, interligados de forma orgânica e ordenada, alimentem o enlevo pelo mistério de Deus, manifestem a unidade da fé e reforcem a devoção.” (S.C. n.41)

Fixemo-nos nas palavras finais onde se afirma que todos os elementos “alimentam o enlevo pelo mistério de Deus, manifestam a unidade da fé e reforçam a devoção”. Se a arte sacra deve alimentar o enlevo, ou seja, o encanto, o deleite, o deixar-se extasiar, cativar… gostaria de manifestar uma intenção que deveria nortear a arte sacra tornando-a meio ou instrumento para um encontro com Cristo.

S. Paulo, aludindo à sua experiência, afirmava que considerou tudo inútil, lixo, para poder conhecer Jesus Cristo. Tinha um passado marcado pela fidelidade à tradição judaica. Sentiu de a deixar, correndo, com alegria, para esta maravilha de querer conhecer Cristo. Daí que os Lausperenes, como momento de contemplação e adoração, deveriam suscitar esta necessidade interior de silêncio para um encontro com a pessoa de Jesus, como centro da nossa fé. Ao lado da reflexão silenciosa poderemos colocar o encontro dialogante com os outros ou a participação de momentos/ cursos de aprofundamento da fé. Torná-la mais racional naquilo que ela encerra de conteúdos compreensíveis, que nunca ignora a dimensão do mistério, é a tarefa prioritária que deveria situar todos os cristãos deste tempo da modernidade laica. Há muita coisa para deixar, permitindo o encontro com Jesus como acontecimento essencial da vida.

Este encontro com Jesus, conhecido como amizade verdadeira, revoluciona a vida. É perdão pelas infidelidades mas apela a não voltar a pecar. Onde está um conhecimento profundo de Cristo, encontramos a urgência duma fidelidade renovada. Cristo entrando na vida, não permite que ela continue com os comportamentos de sempre ou de todos.

Os Lausperenes deveriam, deste modo, proporcionar muita reflexão e muita vontade de mudar de vida. Deixar para trás o que só significa tradição para entrar numa aventura de “tocar” o amor de Deus que purifica as palavras e os pensamentos. Ele não condena ninguém. Só que o erro das pessoas é sempre denunciado para que a fidelidade apareça. Esta conversão deverá acontecer e mostrar que Deus não coabita com a injustiça, a imoralidade, o adultério, o aborto, a eutanásia.

Esta Igreja de S. Marcos, profundamente renovada, estando integrada no conjunto do Hospital, deveria ser como que um apelo à dignidade da vida e da vida com dignidade, um compromisso com a cultura da vida e uma aceitação do imperativo de cuidarmos da vida em todas as dimensões. Propriedade da Santa Casa da Misericórdia, recorda-nos que Deus quer testemunhar, por nosso intermédio, o Seu rosto misericordioso numa vivência de obras de cariz corporal e espiritual.

A ocorrência da reabertura ao culto deste espaço histórico em dia de Lausperene permite-me sublinhar a importância da Eucaristia e pedir a todos os cristãos da Arquidiocese uma leitura meditada da última Exortação Apostólica, Sacramentum Caritatis, do Papa Bento XVI. Na verdade, não podemos contentar-nos com os comentários parciais, e talvez marginais, que a comunicação social tem veiculado.

Teremos de penetrar em todos os conteúdos. Gostaria de sublinhar, por hoje, o subtítulo: A Eucaristia como fonte e cume da missão da Igreja.

Como “Fonte”, a nossa participação na Eucaristia terá de promover atitudes e comportamentos de coerência com o que vivemos e celebramos na vida pessoal, familiar e profissional. A Eucaristia precisa de ser “vista” no nosso quotidiano.

Como “Cume”, não a podemos olhar como dom inacessível, com pensamentos e atitudes rigoristas dum renovado jansenismo. Devemos restituir-lhe a qualidade e dignidade dos templos e de tudo quanto ela exige de material, criando condições para uma celebração em espaços marcados pela beleza. Também a celebração, na variedade responsável dos serviços e ministérios, terá de corresponder às exigências da presença de Cristo. Só uma preparação séria das celebrações e uma vivência conscienciosa é digna do dom que Ele nos faz.

Sintamo-nos gratos por mais este enriquecimento do Património Religioso da nossa cidade e ultrapassemos os muros dos templos para testemunhar, como recordava o Papa, a “unidade de fé”, ou seja, acolhemos uma doutrina exigente e patenteada em Cristo e levamos essa doutrina para o concreto numa autenticidade de vida audaz e desavergonhada. Permanecer no louvor a Deus é o Lausperene, e isto significa trabalhar todas as dimensões da vida onde a beleza manifestada pela arte nos obriga a fugir ao banal e repetitivo.

Obrigado à Santa Casa da Misericórdia de Braga por este testemunho de Igreja. Tornemos a igreja viva mais bela pelo testemunho da coerência e da unidade como presenciamos no conjunto desta intervenção.

Que Deus seja louvado e recompense quem permitiu esta inauguração.



+ Jorge Ferreira da Costa Ortiga,

Arcebispo Primaz


D. Jorge Ortiga | Arquidiocese de Braga
26-03-2007

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