sábado, 18 de outubro de 2008

Santa Casa da Misericórdia de Valpaços

A Voz de Chaves
Arquivo: Edição de 15-06-2007
Hospital de Valpaços
Funcional para uns, ilegal para outros

O Hospital de Valpaços está longe de reunir consensos e até os próprios sócios da Lusipaços, três no total, com 33% cada, já entraram em discordância. Da Misericórdia, particular legal ou ilegal, continua a ser o velho problema que se arrasta há anos.

Já lá vão nove anos, quando a Lusipaços deu início à sua parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Valpaços, mas nem o tempo, nem o elevado número de utentes que por ali passaram apagaram a imagem de suspeição que continua a pairar sobre a forma como aquele hospital é gerido.

Se, para alguns, continua a ser um Hospital da Misericórdia com gestão privada, daí a comparticipação do Estado, para outros, tudo não passa de um Hospital privado que, através de “negociatas”, se serve da Misericórdia para aceder a dinheiros do Estado.

Desde o primeiro dia que os rumores nunca pararam, mas desde que os três sócios se desentenderam a situação complicou-se.

Dário Barros é um dos três accionistas da Lusipaços e, também, muito provavelmente, o mais contestatário à forma como o Hospital de Valpaços é gerido “Pediu-se um parecer aos juristas da Misericórdia de Lisboa, onde dizia que, não só o dinheiro que dá a Santa Casa à Lusipaços está mal empregue, como a mesa administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Valpaços pode ter de devolver todo o dinheiro que cobrou ao Ministério da Saúde. Ao aperceberem-se, na Misericórdia, celebraram um novo acordo com a Lusipaços e esta passou a pagar 6 mil euros por mês à Santa Casa (desde Maio de 2006), mas, para mim, isto é ilegal, pois é um aluguer encoberto. A Santa Casa faz as cobranças ao Estado (Ministério da Saúde), retira 6 mil euros e entrega o restante à Lusipaços,” salientou o accionista espanhol Dário.

Hospital Privado apenas na Gestão

Luís Fraga, o administrador do Hospital que representa a Lusipaços, explica: “Este Hospital é privado apenas na gestão. Não podemos confundir o acesso do doente com quem gere. Dou o exemplo do Hospital Amadora Sintra que, apesar de ser público, é gerido por um banco privado. Para mim, o princípio prende-se sempre com o acesso do doente, ou seja, ir ao médico e pagar ou não pagar. Se é gerido por uma entidade pública ou privada, penso que até para o próprio doente é irrelevante.

Neste caso concreto, é um Hospital de uma Misericórdia, em que o acesso ao Serviço Nacional de Saúde, em grande parte das valências, é gratuito e noutras há o princípio da comparticipação. O Estado está precisamente a ir por aí, pois, o Estado não pode ser regulador, financiador e prestador, porque se não fica tudo no mesmo saco e não permite uma grande transparência. Como o Estado somos todos nós, deviam regular e depois fiscalizar, agora se presta a Misericórdia, um banco ou uma empresa «xpto» isso, quanto a mim, é indiferente”.

Aluguer Disfarçado

Dário Barros vai mais além e levanta uma forte suspeição sobre o suposto “aluguer”. “No momento em que a Santa Casa da Misericórdia de Valpaços “aluga” o hospital, a Lusipaços não pode trabalhar para o Ministério da Saúde, pois, a Misericórdia não tem absolutamente nada a ver com a assistência sanitária, nem com a gestão do hospital. Os direitos da Misericórdia continuam a pertencer única e exclusivamente à Misericórdia e a Lusipaços tem que funcionar como um entre muitos outros privados, cobrando apenas de forma privada e não como se tem feito, pois o que a Lusipaços faz, a meu ver, é ilegal. Eu, como um dos três sócios com 33% da Lusipaços não estou de acordo e quero que se reponha a legalidade. Como estou em desacordo, faço que conste nas actas de todas as reuniões o meu desacordo e que não me faço responsável pelos actos que se estão a cometer. Disse mesmo na última reunião, e está em acta, que lhes vou exigir aos outros dois sócios responsabilidades sobre tudo o que possa acontecer. Uma coisa que fique bem clara. Eu não estou a participar na gestão da empresa. Se a Misericórdia tivesse parceria era uma coisa, assim, com um “aluguer” disfarçado a história é bem diferente”.

Princípio da Comparticipação

Luís Fraga garante que esta é uma prática comum das Misericórdias dizendo: “Este é um Hospital da Misericórdia que tem um acordo com o Serviço Nacional de Saúde, e, em alguma actividade, como é comum em todas as Misericórdias, há o princípio da comparticipação”.

Grande parte das queixas sobre aquele estabelecimento de saúde prendem-se com a forma como o privado é ali camuflado, pois apesar do Estado comparticipar, e do utente ter de pagar a consulta, o recibo não é a Lusipaços que o emite, mas continua a ser a Misericórdia, beneficiando assim dos benefícios fiscais que estas instituições têm. Luís Fraga, que não escusou nenhuma das questões que lhe colocámos, frisou: “Relativamente aos cuidados continuados, e segundo um despacho do senhor Ministro, chegou-se à conclusão que o que pagam não dá para suportar os custos. Para uma consulta de especialidade, o Estado paga apenas seis euros e eu pergunto, ainda que o hospital entregue os seis euros ao médico, como é que se conseguia trazer especialistas a Valpaços para prestar serviço? O princípio da comparticipação nas Misericórdias existe e muitas vezes foi posto em questão se é legítimo ou não, mas o que é certo é que há alguns despachos do próprio ministério da saúde e do IGF (Instituto de Gestão Financeira) que falam no princípio da comparticipação e se assim é, quer dizer que alguém paga uma parte.

Também sei, e isto já é falado há pelo menos nove anos, que o Estado iria rever os valores que paga à Misericórdia. Numa cirurgia, por exemplo, às amígdalas, o Estado paga 210 euros. Como é que é possível fazer uma cirurgia onde estão dois Otorrinolaringologistas, o anestesista, um enfermeiro instrumentista, um enfermeiro circulante, o restante pessoal auxiliar, toda a envolvente da cirurgia e o internamento por este dinheiro?

Era impraticável. Apesar de haver muita contestação, por terem de comparticipar, os próprios pacientes sabem que se não fosse assim era impraticável e isso era o fim das Misericórdias”.

Quanto aos lucros, Luís Fraga referiu que “Os lucros, obviamente, são para ambas as partes. Quando se faz um contrato com alguém há varias formas de contratualizar o serviço. Uma é pagarem um valor fixo por mês, pelo serviço que prestamos à Misericórdia, outra é nós gerirmos e sobre o que ficar há uma participação nos resultados. É uma modalidade de pagamento não de nós à Misericórdia, mas sim da Misericórdia a nós, porque quem recebe é a Misericórdia”.

A questão dos benefícios fiscais também foi abordada e Luís Fraga garante que “ninguém foge aos impostos, pois quer a empresa, quer a Misericórdia estão isentas de IVA. A Misericórdia porque é uma IPSS e a Lusipaços porque presta serviços de saúde e, ao abrigo do nº2 do Artigo 9º do Código do IVA, as empresas que prestam serviços de saúde e similares têm isenção”.

Luís Fraga sabe que nem todos vêem o Hospital de Valpaços com bons olhos e boatos é o que não falta, mas os seus números, e o que a Lusipaços tem feito por Valpaços, segundo ele, deviam ser levados em linha de conta: “Criamos 70 postos de trabalho e vem muita, mesmo muita gente a Valpaços. Vão aos restaurantes, os médicos, alguns deles, que vêm de Espanha, dormem em Valpaços e levam azeite e vinho e só em 2003 fizemos perto de 400 cirurgias do hospital de Viseu. Trouxemos muita gente a Valpaços e tínhamos de ser apoiados. Criticar o que de facto é criticável, mas criar sinergias para potenciar a região deveria ser o caminho”.



Tudo está bem explícito

Apesar de tentarmos encontrar respostas para todas as dúvidas, no seio da população a suspeição continua e o mesmo utente, que até tem familiares a trabalhar no Hospital, daí querer manter o anonimato, levantou um elevado número de suspeições que segundo ele já mereciam uma investigação: “Não é no mínimo estranho que uma empresa como a Lusipaços não tenha funcionários contratados e que os médicos e enfermeiros estejam todos a recibos verdes?” Questionou o utente.

Segundo o Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Valpaços, Eugénio Morais, que também foi confrontado com toda esta situação, nada de estranho ali se passa e tudo está bem explícito nos contratos celebrados. “Elaborámos um contrato de acordo de parceria, com duração de 15 anos com a empresa Lusipaços, para combater a falta de médicos com que nos debatíamos em Valpaços, mas o dono do espaço físico continua a ser a Santa Casa da Misericórdia de Valpaços, com divisão dos lucros em 50% para cada lado. Quanto ao pessoal e à forma como a Lusipaços o gere, é da sua única responsabilidade, pois as despesas e encargos também são exclusivamente da sua responsabilidade,” frisou o Provedor.

Para concluir, o mesmo utente, deixou uma outra questão no ar: “Se houver um problema grave neste Hospital quem é o responsável.?A Santa Casa da Misericórdia de Valpaços ou a Lusipaços?

Segundo o Provedor, a resposta para essa questão é fácil. “O responsável seria, sem qualquer dúvida, o Director Clínico”.

A questão da facturação foi também um dos temas abordados junto do Provedor e este garantiu desconhecer que os recibos das comparticipações e das consultas particulares, que ali se fazem, são emitidos pela Santa Casa. “Sei que também se faz neste hospital medicina privada, mas desconheço que, nestes casos, o recibo seja emitido pela Santa casa”.


Um caso

Um utente do lar da Santa Casa da Misericórdia teve de permanecer internado no hospital alguns dias e, para o deixarem sair, depois da alta, exigiram-lhe o pagamento da taxa moderadora, pelo que surgiu a questão “Se o hospital realmente é da Misericórdia, e se o senhor até está no lar, para que é que exigiram o dinheiro? São estas coisas que não conseguimos entender neste hospital. Quando não interessa, o hospital é da Misericórdia, quando interessa, já é privado,” frisou um valpacense utente daquela unidade de saúde que por Valpaços ser um meio muito pequeno e todos se conhecerem preferiu manter o anonimato.

O administrador do Hospital não escondeu que, de facto, isso aconteceu e fez questão de explicar: “Para nós é extremamente complicado não cobrar as taxas de imediato, pois, como imaginam, são muitas as pessoas que vão embora e não pagam. Esse dinheiro é muito difícil de se receber, e, por exemplo, não iremos meter em tribunal uma pessoa que esteve internada sete dias e que deve 70 euros, pois o valor é irrisório. Mas se estes 70 euros se multiplicarem por muitos, o prejuízo é grande. Muito mais quando se trata de taxas moderadoras na ordem dos 3 ou 4 euros.

De facto, demos instruções aos enfermeiros, que são quem entregam as altas, que tentem receber estes valores. O problema é que não só um doente, mas sim milhares, e todas as semanas enviamos cartas a pedir três, quatro, cinco e seis euros.

De facto, a enfermeira disse ao senhor que só podia ter alta depois de pagar as taxas moderadoras e o senhor ligou para o lar e disse que não o deixavam sair sem pagar. Do lar, ligaram para aqui a dizer que o doente era de lá e que eles depois pagavam e o senhor teve imediatamente alta e não, como se diz, que teve de aqui ficar mais um dia. Se calhar, houve precipitação da nossa parte e, de facto, em vez de termos comunicado esta situação ao utente, deveríamos ter comunicado ao Lar”.

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